sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Diálogo em versos

Este diálogo entre mim e o Poeta de Meia Tigela ocorreu por correspondência, ainda não nos encontramos, mas espero abraçá-lo em breve.

1.
Muito embora pavorosa
Minha palavra – mefítica,
Ofereço-a à contista
Lourdinha Leite Barbosa!

2.
Cada um dá o que tem
ou o que sabe fazer,
o poeta oferta versos.
O prosador desconversa
e conta um fato qualquer.
Eu que não sei poetar,
só quero dizer sem trela:
Muito obrigada, amigo,
Poeta de Meia Tigela!

Lourdinha Leite Barbosa

Leitura investigativa do conto Além das Aparências

Quem conta um conto acrescenta um ponto. Pelo visto quem o lê também o faz. Assim, ao finalizar a leitura deste belo texto da escritora Lourdinha Leite Barbosa, senti-me encorajada a seguir o adágio popular. Sem pretensão de fazer crítica literária, esta é apenas a leitura de alguém que reconhece o valor e a necessidade da criação ficcional.

A autora antecipa pelo título, "Além das aparências", a ultrapassagem do círculo limitante da realidade imediata. Para isso mergulhou em profundas águas de onde foi capaz de apreender inumeráveis facetas da experiência humana e, quem sabe, nos tornar conscientes delas. Afinal, através da recriação, a literatura mostra que o real pode ser transformado.

Utilizando-se de uma linguagem elaborada, que em várias passagens beira o poético, Lourdinha fala da necessidade que tem o ser humano de completar sua vida incompleta. As personagens são anônimas, apenas um homem e uma mulher. Entre eles um abismo de anseios, angústias e segredos: "...loucos pensamentos na constante tentativa de captar o mais leve estado da alma daquela mulher cujo corpo ele já possuía". Frente à impossibilidade de ser plenamente saciado pelo objeto de seu amor, o homem se mostra insatisfeito. O desnudamento já não é suficiente, é preciso atingir o ser da parceira. O homem quer, além da violação do corpo, a da alma e constata, por conta disso, que "então ele não tinha nada, somente um invólucro sem conteúdo".

Isso nos remete ao primitivo anseio de fusão e apoderamento própria da relação simbiótica. O homem se apega à ilusão de que ao "tê-la por inteiro", ao "ultrapassar a matéria e chegar à essência", ao se dedicar à inconcebível posse da mulher, será possível reencontrar a unidade perdida.

Exaspera-se e "sai como um louco, observando as mulheres que se desdobram em busca da vida, enquanto escondem nos bolsos os sonhos mais caros". Com apurada sensibilidade, Lourdinha leva-nos a pressentir que o personagem, num estado de total solidão, identifica-se com todos que pagam por aqueles corpos, sem compreender exatamente o que procuram. Mas ele sabe. Sabe que mesmo quando a mulher se oferece não se entrega totalmente. Recusa a associação que se insinua entre a mulher que não lhe dá a alma e aquelas que vendem o corpo. Sente que o amor tem seu custo.

Sua mente não se aquieta, os mesmos pensamentos repetidamente recomeçam: "...que sonhos ela guardaria?" A cabeça explode, a energia se esvai "cresce a ânsia de tê-la por inteiro". Os traços obsessivos se agigantam e a neurose se instala. Engessado em si mesmo pensa, pensa, pensa tanto, que paralisa qualquer ação.

A mulher chega, "inconsciente do conflito que provoca no marido", quer apenas o reconforto do retorno. Liga a televisão, única voz que há tempos agita a monotonia e o tédio cotidianos. Está só e "descobre nos olhos que a observam do espelho o desgaste provocado pelo fluir do tempo". Talvez pense nos sonhos, emoções e fantasias nunca compartilhadas.

Afasta a melancolia e com "um toque no controle remoto desliga a realidade", a sua e a do mundo. A alma continua do mesmo modo: inviolada.

Nenhum diálogo, nenhum movimento em direção ao outro. O homem que sonha em capturar a alma da mulher ignora que juntos, homem e mulher se fortalecem. Persiste, então, entre eles um silêncio sepulcral. Nenhuma palavra escapa ou mesmo surpreende.

O homem, "na madrugada, demora o olhar sobre a mulher" e "cobre-lhe o rosto com o lençol", quem sabe por não suportar o que vê em si mesmo através do rosto dela.

BEATRIZ JUCÁ
COLABORADORA*
* Psicóloga

Traços do estilo

(ontinuação do texto de Laéria Fontenele)

Publicado em 16 de outubro de 2011
Compartilhamento


Mas como ela o faz? O narrador persegue com vigor o núcleo da palavra por intermédio da figura-imagem, mas o que tem por resultado é atualização da distância da sua zona de silêncio. Por isso mesmo, muitos dos contos de Lourdinha Leite Barbosa são prenhes de cromatismo, são picturais. Por isso, observamos que, pela moldura da janela, a voz narrativa atualiza apenas um momento do olhar, o que separa o horizonte que os olhos vislumbram sempre tão longe e aquilo que nos é mais íntimo, nos é mais fático e mais banal. Esse é o justamente o instante responsável por separar a ficção e o osso da realidade. (Texto IV)

Nos diversos contos do livro podemos constatar que o mundo, como espaço de sentido, é desarmônico, tanto quanto o é a realidade cotidiana vivida pelas personagens e o que se projeta para além dela como espaço do desejo. Mas nem mesmo a fantasia, que o horizonte vislumbrado pelo olho do narrador aciona, é capaz de promover a simetria dos elementos, das coisas e, sobretudo, do querer de homens e mulheres, algo insiste em não significar apesar da potencialidade polifônica do significante, tão presente nos contos. É justamente a exposição disso que está para além do sentido o que dá, a nosso ver, uma tonalidade sutilmente erótica à ficção de Lourdinha Leite Barbosa, mas também é o que se torna imperativo à própria feitura dos seus contos: a concisão, ou seja, a precisão com que trabalha a linguagem e a brevidade narrativa, que resulta em tentar capturar o que há de fugidio no próprio instante em que olhar se destaca do olho e cai, tornando baça a vidraça da janela.

Eles & elas

A tela da fantasia, projetada nos contos de Lourdinha Leite Barbosa, também revela a dissimetria entre eles e elas; não à toa, a vez deles e delas não é a mesma. Essa demarcação da diferença entre o querer feminino e masculino se manifesta não apenas nos caminhos e descaminhos de homens e mulheres, vistos a partir do olhar do narrador. ou nele encarnados, mas na própria estruturação do livro. Tal modo de dispor os contos no espaço do livro mostra que, apesar de seus poderes, a fantasia não é capaz de reunir numa só tela a vez deles e a vez delas. (Texto V)

A seu modo, Lourdinha Leite Barbosa revela, por intermédio do literário, que o muro que separa o homem da mulher é o mesmo que separa os Falaseres do mundo, mas mesmo que as palavras possam servir de pontes entre eles, serão apenas ponte, frutos de uma construção, e que às vezes desabam ou são corroídas pelo tempo. Mas o que faz das personagens homens ou mulheres? É, justamente, a projeção fantasística do narrador que, ao tentar diminuir o abismo que os separa, oferece ao olhar do leitor, despertando-o para a problemática reprimida da alteridade e convidando-o para recompô-la por meio do gozo da obra, onde o leitor poderá, conforme Paul-Laurente Assoun, gozar suas próprias fantasias sem qualquer reprovação ou qualquer vergonha.

Narrador & leitor

Não se trata do narrador transferir a sua fantasia para o leitor, mas deste ter sua fantasia restituída por aquele, por isso a leitura é prazerosa e distrai. Ocorre no ato da leitura a produção de prazer. O narrador de Pela moldura da Janela oferece-se ao seu leitor de modo a ser por este tomado como alteridade simbólica. Com isso busca proporcionar a descarga da tensão que a própria narrativa constrói. Por isso, a leitura é uma poderosa distração, provoca satisfação e alívio. A estrutura do chiste, que consiste num processo social entre o narrador da piada, o seu destinatário e a iluminação que provoca o riso, se encontra presente no modo como se dá o enlace entre o narrador e o leitor implícito da ficção de L. L. Barbosa. Aí o prazer confina com a realização do sentido do chiste, o que se encontra sugerido nas entrelinhas do discurso ficcional. Do seu dito salta o dizer; de sua escrita, cores e ritmos. Palavras cambaleiam sob agitadas águas, mas não afundam.

Trechos

TEXTO IV

Uma poeira fina cobria móveis e invadia frestas,e o constante baticum impedia qualquer tentativa de sossego. Mas tudo isso não era nada, se comparado às mudanças ocorridas no comportamento dos moradores. Antigos hábitos tiveram de ser abandonados: ninguém mais circulava só de roupa de baixo ou saía do banheiro enrolado em toalha. Agora, a preocupação era com cortinas e janelas. Cuidado! Feche a cortina. Está muito quente! Abra a janela só um pouquinho. A primeira providência foi colocar uma película escura sobre as vidraças, mas essa solução trouxe novos problemas: quando se fechavam as janelas, era preciso acender luzes
e ligar ventiladores ou aparelhos
de ar -condicionado.

("Mas que los hay, los hay", p. 37)

TEXTO V

Equilibrando -se entre imagens, letras e sinais de trânsito, estacionou em frente ao colégio. O garoto saiu numa desabalada carreira, sem que ele pudesse
detê -lo. Tentou acompanhá -lo e quase foi atropelado por um grupo de palavras que se embaralhavam em sua mente. Indiferente aos gritos do pai, o menino estancou diante de uma pilha de revistas em quadrinhos que um rapazote arrumava na calçada. De repente, imagens e letras confundiram -se de vez. Já não eram somente os olhos do menino que devoravam as revistas; o pai, deslumbrado, não conseguia afastar o olhar delas. ("Entre imagens e letras", p. 83)

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

A ficção de Lourdinha Leite Barbosa

Publicado em 16 de outubro de 2011


O livro "Pela moldura da janela & outras histórias", de Lourdinha Leite Barbosa, foi agraciado pela Academia Cearense de Letras com o Prêmio Milton Martins de Contos. Isto, por si só, já lhe aponta o reconhecimento de seu valor literário.

A autora também dispensa apresentação. Seu mérito profissional e literário é atestado com frequência por seus pares. Aqueles que a conhecem, sabem que a sua intimidade com as letras vem dos longes de sua história, tendo ela se feito matéria de sua trajetória - de Professora e de pesquisadora da UECE, de ensaísta e de ficcionista - e que pode ser atestada por suas diversas publicações em revistas especializadas, livros e coletâneas. É membro da Academia de Letras e Artes do Nordeste, da qual foi presidente de dinamismo marcante, colorido por seu amor a tudo aquilo a que se dedica. Sendo, no momento, um dos membros de sua direção.

A tessitura ficcional

No texto de apresentação que escrevemos para constar em "Pela moldura da janela e outras histórias" tivemos a oportunidade de discorrer sobre os principais aspectos formais que caracterizam a sua tessitura ficcional. Eles nos permitem caracterizar o estilo de sua autora, seu modo de recortar com a palavra o real.

Aspiramos aqui, tão-somente, falar-lhes de um detalhe para o qual chamamos a atenção do leitor: um tipo de efeito estético, que se depreende da narrativa, que nos permite aproximar seus contos da pintura, afastando-se do modo convencional com que se ordenam os elementos como o tempo, o espaço, o foco e o discurso na construção da narrativa.

Singularidades

Ambicionamos abordar esse aspecto por considerar ser ele o mais singular desse seu novo livro, e o que mais diz do seu estilo, pois, residi nisso uma singularidade. O modelo do estilo, por sua vez, faz confluir a ética e a estética, ponto fundamental na consideração estilística do literário, consoante o entendimento que fazemos desse aspecto, dentre tantos outros que dizem de sua desafiadora face. (Texto I)

O título, embora nos reenvie para um dos contos, diz por via metonímica muito das outras histórias do livro. Nele, o olhar do narrador pende da janela, mas qual a posição de seu olho? Localizado numa zona de fronteira - a moldura - portanto situado dentro e fora dela -, observa-se a produção textual do desequilíbrio das forças contrastantes ou surpreendentes que desfiguram o cotidiano de suas personagens. Por intermédio da própria materialidade da escritura, na medida em que expõe a vocação polifônica da palavra e a as suas fraturas a um só tempo: sua face significante e de letra. (Texto II)

Dos efeitos dessa exposição, resulta o que Lyotard (1971) relaciona com a origem não significável da linguagem: "le silence contenu dans la parole". A autora atesta com seus contos a realidade desse silêncio elementar; e sua busca consiste em melhor figurá-lo. Tarefa que se concretiza na sua escrita, que se situa no limite dos campos privilegiados à sua figuração: a ordem da linguagem - especialmente através da produção do ritmo próprio ao campo poético por meio da figura-forma - e o campo pictural por meio da figura- imagem.

Trata-se de uma escrita que navega em ziguezague à cata das aventuras do significante. (Texto III)

A moldura

A singularidade desse procedimento resulta em uma sorte de metaficção, onde se confundem a feitura do ficcional com a potência e a impotência da palavra em significar o impossível, por isso mesmo, além da exposição desse limite, o que a autora projeta a partir da moldura da janela é a tela mesma da fantasia e por esse procedimento frutifica a relação de cumplicidade entre o texto e o seu leitor. Este tem por vocação, no silêncio mesmo de sua leitura, dar um sub-tratamento à fantasia do autor - que no caso do livro oscila entre sua produção e dissolução, pois, em muitos momentos, o cromatismo que se impõe como processo de significação, aspira, justamente, recompor a fratura que as epifanias provocam na fantasia - o despertar para o real intolerável - convocando o leitor novamente ao sonho. Dessa forma, a produção do sentido depende desse entrelaçamento entre a fantasia do autor e a fantasia do leitor que a voz narrativa procura, assim, potencializar.

Trechos

TEXTO I

Os quadros mais antigos se alargaram e forçaram os mais recentes a se comprimirem. Nesse empurra-empurra, alguns se inclinaram. Ingrid percebeu um leve rumor e recolocou -os em seus lugares. As cinco mulheres de branco que se dirigiam às suas casinhas, no quadro de moldura negra, assustaram -se com o movimento e apressaram o passo.

A luz atravessou a janela e pousou sobre o quadro em que uma moça caminhava por uma rua ensolarada. Ela estancou, largou a cesta que mantinha encostada ao quadril e rodopiou sobre o calçamento irregular. ("Quadros em movimento", p. 43)

TEXTO II

Acordou com os primeiros raios de sol, abriu a janela e foi surpreendida por uma cena inusitada: no apartamento em frente, um casal fazia amor com as janelas abertas. Sentiu -se atraída pela perfeição dos corpos em movimento e uma sensação de plenitude a invadiu. Longos eram os cabelos da mulher, ruivas faíscas sobre o lençol. O branco de sua pele contrastava com os escuros braços lascivos que a envolviam.

Sentindo -se observada, a moça fechou a cortina. Percebeu, então, que a cinza cortina que recobria seus olhos havia -se rompido.

("Pela moldura da janela", p. 22)

TEXTO III

Tentando controlar o tropel das recordações, o filho entrou na casa trazendo a filha menor pela mão, vinha cumprir a terrível missão de desalojar suas mais caras recordações. Ali, permaneciam intocadas sua infância e juventude, desaninhar uma ausência tão presente e violar seus segredos era abrir uma ferida ainda não sarada. Fotos, orações, documentos, já não tinham qualquer serventia. Por entre frestas, podia ouvir o ressoar da voz materna:

"Não sei onde guardei aquelas fotos das bodas de sua tia Antonieta", "Veja esta foto de minha irmã Stela aos dois anos".

Eram lembranças de uma vida, cujos personagens perderam -se no tempo.

Buliçosa, a menina abria e fechava gavetas sem que o pai, aprisionado no passado, percebesse. De posse da velha agenda, ela debruçou -se na cama e começou a escrever o nome e telefone de suas amigas sobre as linhas esbranquiçadas, avivando as borboletas azuis, que, levemente, retomavam seu voo.

LAÉRIA FONTENELE
COLABORADORA*
*Psicanalista e prof. da UFC

--------------------------------------------------------------------------------

--------------------------------------------------------------------------------

sábado, 15 de outubro de 2011

Ai palavras



Ai palavras, ai palavras,
que estranha potência a vossa!
Sois de vento, ides no vento,
e, em tão rápida existência,
tudo se forma e transforma!
(...)
Ai palavras, ai palavras,
que estranha potência a vossa!
Todo o sentido da vida
Principia à vossa porta
(Cecília Meireles, “Romance LII ou das Palavras Aéreas)
A língua define o mapa,
traça linhas, tece fios,
entre dentes desafia
os que querem amordaçá-la.
Rebela-se solta o verbo,
dá com a língua nos
dentes, rompe barreiras,
renova-se,
une povos,
continentes.

Lourdinha Leite Barbosa

As molduras ficcionais de Lourdinha Leite Barbosa




PELA MOLDURA DA JANELA & outras histórias, segundo livro de contos de Lourdinha Leite Barbosa, traz 22 histórias distribuídas em três blocos: “A vez delas”, onde temos narrativas que focalizam nuances de personagens femininas; “A vez deles”, que abre espaço ao universo masculino, e “Dois pra lá dois pra cá”, com quatro contos que, dois a dois, contam e recontam o mesmo enredo por meio de pontos de vista diferentes.

Suas narrativas são concisas, sua linguagem é simples, mas velada em símbolos que puxam a atenção do leitor. Por que o mundo perde as cores para a protagonista do conto “Pela moldura da janela”? Por que as borboletas da capa da agenda ‘voltam a voar’ quando a menina passa a utilizá-la, após a morte da avó? Por que o segundo lote de vinho servido é melhor que o primeiro (em “Casamento no Campo”)? Qual dos irmãos fala a verdade (“Costurando a trama” e “Descosturando a trama”). Pequenas inquietações se formam com as provocações daquilo que é menos dito e mais sugerido.

Sua matéria é o cotidiano em desordem: o amor que finda, a velhice, a morte, os desencontros, as limitações humanas, o ciúme, a traição, a vingança, a loucura, a cidade e suas tramas. Nada, entretanto, imprime pessimismo à sua escritura denunciadora dos desequilíbrios, ao contrário, há sempre a possibilidade de renascimento e renovação, como ela bem simboliza na figura das borboletas azuis, desenhos na capa de uma agenda, que parecem ganhar vida na imaginação do leitor.

O título do livro – Pela moldura da janela – também título do conto que abre a coletânea, ratifica o que diz a psicanalista e professora Laéria Fontenele no Prefácio: “Os contos de Lourdinha Leite Barbosa aproximam-se de um quadro”. De fato, são cenas emolduradas, recortes de instantes que ganham vida na sua criação prodigiosa. Os personagens não têm passado nem futuro, só o momento fisgado pela ficção.

Enquanto a falta de amor tira as cores da vida de uma recém-separada (“Pela moldura da janela”), as desconfianças de traição (“Pontos e nós”) não se confirmam nas investigações de uma mulher que vive uma relação duradoura. A velhice que chama a morte (“As borboletas azuis”) renova a dimensão humana na criança que parece dar continuidade aos passos da avó que se foi serenamente. A morte de uma irmã é o recomeço da vida da outra (“Sonata para violino em três vozes”).

A urbanidade sufocante desorganiza o equilíbrio da mulher, e a ficção o transfigura em fantástico. Sim, na subversão do real, sem alegoria entretanto, a mudança da paisagem com a construção de um prédio ao lado do que mora a protagonista desencadeia o insólito em “...Mas que los hay, los hay”. Entre a realidade e o delírio, ela sente a invasão do seu espaço, a perda da privacidade com a presença de pedreiros muito próximos à sua janela. A sensação de emparedamento na selva urbana a faz transpor o real e misturá-lo ao sonho que vira pesadelo e é, ao mesmo tempo, delírio: “Acordou de madrugada com a sensação de estar num navio à deriva. Num impulso sentou-se na cama e não acreditou em seus próprios olhos: o esqueleto de tijolos estava colado à janela do seu quarto, emparedando-a. Desesperada, acendeu a luz e viu o apartamento ser tomado por um bando de morcegos com caras humanas que voavam numa enorme algazarra. [...] Pela manhã ela foi encontrada com um relógio de pulseira preta puída na mão, repetindo sem cessar “Como morcegos, ao cair das badaladas, / saltam de viga em viga os mestres carpinteiros”” (p.38-39).

O mal-estar sartreano desse conto dá à ficção de Lourdinha uma dimensão existencialista, que se afirma prodigiosamente em “Quadros em movimento”, onde o gênero fantástico se realiza com perfeição. Uma moça, Ingrid, recém-chegada de viagem, “com a mala quase vazia, mas a mente repleta”, acrescenta mais um quadro na parede do seu apartamento. Ouvindo distraidamente Chico Buarque, ela não percebe que as figuras dos quadros ganharam vida e estão desertando das telas... desaprisionadas, conversam entre si e denunciam o momento em que foram detidas pelas tintas de algum pintor. Embora demonstre atordoamento, não há racionalização do insólito por um provável delírio da personagem, provocado pelo cansaço: “Durante a confusão, uma moldura caiu. Ingrid levantou-se atordoada. Estava mesmo precisando descansar, suas pernas pareciam não lhe pertencer. Apanhou o quadro e, ao colocá-lo de volta, parou perplexa: sua parede estava coberta de molduras, cujas telas não tinham um vestígio sequer de tinta” (p.45). O inexplicável aconteceu, e a prova são as telas brancas, abandonadas por suas imagens.

Já em “Casamento no Campo”, a sugestão do milagre ‘da multiplicação dos pães’ e da transformação da água em vinho traz uma intertextualidade com a Bíblia Sagrada, mas sem qualquer conotação religiosa. A mãe exige a presença do filho em uma festa de casamento dos vizinhos, cuja cerimônia simples já havia sido muito adiada em função das dificuldades financeiras. Cedo, o vinho acaba, e Maria (a mãe), vendo os amigos angustiados, pede a interferência do filho, que logo passa a encher as garrafas na torneira e... qual a surpresa: todos dizem que o segundo vinho servido é bem melhor que o primeiro que circulara. A possibilidade do milagre toma consistência em dois símbolos que sugerem ser Jesus Cristo o rapaz: o nome de sua mãe é Maria, e o pai é marceneiro. As sutilezas das descrições, entretanto, não permitem constatações, e a história flui no discurso da incerteza.

Em “Tentando acertar o passo”, é a solidão que leva a mulher ao mundo virtual e à busca de um amor por meio de chats de relacionamento. As características do mundo contemporâneo se desenham, enredadas nos sentimentos de desconforto com a existência: a solidão que leva a mulher a buscar amor de forma insegura (“Tentando acertar o passo”) no jogo da vida; a insegurança num casamento de muitos anos (“Pontos e nós”), que faz a esposa vasculhar os originais do romance do marido-escritor para encontrar-se no enredo e comprovar se está sendo traída, numa confusão evidente entre a ficção e a realidade; as limitações em função de problemas de saúde, que levam a personagem a mutilar os livros para poder lê-los, já que não pode mais sustentar o peso deles nas mãos.

Com já dissemos, nenhum problema culmina na ausência de soluções ou de pessimismo: a moça que procura amor no mundo virtual se decepciona, mas não desiste de sua busca; a esposa ciumenta descobre que o amor do marido por ela se renova por meio da criação; a leitora que não suporta o peso dos livros e vive a dilacerá-los procura montar uma clínica de recuperação de livros. Em outra perspectiva, a limitação aparece no conto “Um copo que cai”, quando uma criança sobre numa cadeira para pegar um copo na prateleira alta e sem chora ao vê-lo despencar-se de suas mãos, enquanto ouvia as recomendações da mãe.

Já no conto “Raios de sol”, que tem como personagens duas jovens estudantes, o ciúme se configura de modo nocivo, pois uma delas, com inveja do cabelo loiro da outra, por quem seu paquera é apaixonado, convida-a para dormir em sua casa e corta os seus cabelos (dela) durante a noite. O símbolo da força ligada ao cabelo retoma a história de Sanção, que perde os poderes quando Dalila corta-lhe as longas madeiras. No conto, sem os louros cachos, a moça perde o poder de sedução.

Em “Sonata para violino em três vozes”, a história se dá em dois momentos: Inicialmente, no ‘Primeiro andamento: lento’, se descreve o casamento feliz de Melina e sua gravidez até a sua morte durante o parto. No ‘Segundo andamento: ligeiro’, a desolação do viúvo logo passa com a dedicação das cunhadas ao bebê. A mais nova delas, Marissol, deixou seu violino na casa dos pais e passou a viver em função da criança, na casa do cunhado. Finalmente, acaba por casar-se com ele e tornar-se mãe da criança órfã de quem é tia. Em nenhuma descrição do conto esse fato se realiza, a não ser na sugestão final: “Ninguém se surpreendeu quando, um ano e meio depois, Artur atravessou a cidade com o velho violino de Marissol debaixo do braço” (p.64). São nuanças assim, sutis mas sorrateiras, para enredar o leitor atento, que dão consistência ao projeto estético das narrativas da escritora e marcam seu estilo enxuto e sugestivo.

Rompendo qualquer rótulo de escrita feminina, Lourdinha mergulha no universo masculino e dá foco às vivências deles. Situações do nosso tempo também avultam como leitmotiv: o intercâmbio do jovem que, fora do país, desenvolve uma síndrome de perseguição (Planejar pra quê?); o menino-leitor de revistas em quadrinho que se transforma em escritor (“Entre imagens e letras”); o menino que tinha obsessão por pés e se torna um fetichista maníaco (“Sapatos, pra que te quero?”); o marido que se vê incapaz de desvendar a alma da mulher amada (além das aparências”); a criança que não aceita a ausência do pai e passa a vê-lo num mendigo de rua (“A voz do silêncio”). Há, nos contos, desvendamentos e avessos, patologias repentinas, densidade psicológica. Os subtextos parecem saltar aos olhos do leitor.

A passagem inexorável do tempo e as transformações que ocorrem nas pessoas é marca dessa ficção que tem o humano como cerne, senão vejamos: a agenda da avó morta vira herança da neta, marcando a continuação da vida (“As borboletas azuis”); com o tempo, o viúvo resolve retomar a vida com a irmã da esposa falecida, renovando-se por meio do filho e do novo afeto (“Sonata para violino em três vozes”); o menino pobre, leitor de revistinhas rasgadas, que se acostumara a continuar as histórias com sua imaginação e contá-las aos amigos “com a magia e o deslumbramento provocados pela palavra” (p. 85), torna-se, na fase adulta, um escritor de revistas e vê no filho a sua mesma antiga paixão, só que, na vez dele, os personagens já não são pessoas comuns do mundo em que ele vivia, mas heróis parecidos com robôs (“Entre imagens e letras”), o que revela, mais uma vez o traço contemporâneo dos elementos ficcionais da escritora.

Outra história que parece emergir do passado é “Sapatos pra que te quero”, onde a narradora recorda um amigo que era esteta de pés femininos e toma conhecimento de que, depois de adulto, o fetiche continuou e tornou-se incontrolável, chegando a criar problemas do rapaz com a polícia.

Já em “A voz do silêncio”, um grupo de amigos, que foram jovens nos anos 60, fazem uma festa para promover o reencontro... recordam nomes, atualizam destinos, respiram ao som da Bossa Nova: “A emoção do reencontro foi, aos poucos, suspendendo o presente e trazendo de volta o passado. Eram os jovens da década de 60 que retornavam, irmanados, ao tempo da bossa nova: “Vai minha tristeza e diz a ela que sem ela não pode ser”. Alguns cantavam, outros tinham a palavra cortada antes mesmo de proferi-la, mas ninguém se importava” (p. 118). As rememorações discorrem quase sempre por meio de trechos de letras de música de Tom Jobim, João Gilberto e Vinícius de Morais, num poético exercício de intertextualidade.

Um conto se destaca especialmente pela aparência com fatos reais ocorridos no universo literário: “O envelope amarelo pardo”, em que se conta a última ida de um escritor aos Correios, para postar livros aos amigos; quando chegaram ao destino e foi lida a dedicatória, os amigos já sabiam que, na volta para sua casa, o escritor havia sido atropelado e morto. As dedicatórias figuram como uma despedida. Pelo teor da história e seus desdobramentos, bem como pela descrição do personagem-escritor, Lourdinha parece homenagear o poeta José Alcides Pinto, que foi atropelado quando retornava dos Correios onde foi postar seus novos livros aos amigos que moravam fora da cidade. Não há, porém, nenhum elemento intratextual que marque essa certeza.
A última parte, “Dois pra lá dois pra cá”, a expressão que é verso de bolero já denota um compasso marcado pelo número quatro. De fato, são quatro contos que, dois a dois, contam e recontam a mesma história por meio de pontos de vista diferentes. – A verdade tem suas versões.

No primeiro par, temos o relato de dois irmãos que se tornam inimigos. Em “Costurando a trama”, um deles, o que foi traído, assume a narração para justificar por que fez a ‘mandinga’ para o outro ficar impotente (porém com a tentação do desejo): teve a sua mulher seduzida por ele. O relato se inicia como uma resposta negativa a um pedido da mãe de que retirasse a bruxaria feita. O discurso é pontilhado por clichês reinventados e bem contextualizados (“Tenho comido o pão que o João amassou; agora é tarde”, “o cão já mordeu a língua”; “quem mandou pegar no pote se a rodilha era alheia”) e intertextualiza a grande contenda bíblica entre Caim e Abel, o que fica patente a partir do nome dos dois personagens, embora o narrador chame atenção para que seja diferente, como se quisesse fugir da sina de irmãos predestinados a serem inimigos: “Meu nome é Ariel, mas qualquer semelhança com Abel é mera sonoridade” (p.125).

Em “Descosturando a trama”, o irmão ‘traidor’ conta como se apaixonou por Elisa, antes de ela engravidar e se casar com Ariel, de o quanto resistiu à tentação de envolver-se com ela; descreve os comentários sobre os maus tratos do irmão com a mulher e, finalmente, assume o delito: “Diz o ditado que quem puder fuja da paixão; nós não conseguimos. Durante um longo tempo, permanecemos no olho do furacão. Cponsumidos pelo fogo, descemos ao inferno e subimos ao céu. O tempo apagou o escândalo, e amadureceu as chamas” (p.131).

Já em “(Des)conto I” e “(Des)conto II” tem-se o mesmo início, mas desdobramentos diferentes para o mesmo crime, como no próprio relato se afigura, à moda Pedro Salgueiro, que no livro Brincar com Armas, utiliza magistralmente essa técnica.

Lourdinha Leite Barbosa, embora professora de Teoria da Literatura, não se trai ao utilizar teorias. Ela sabe modular seus conhecimentos técnicos e não permite que sua inventividade se submeta a eles. Brinca com as palavras, experimenta gêneros, cria imagens inusitadas, dialoga com suas leituras e cria telas com palavras sempre emolduradas por seu senso estético e sua sensibilidade. Pela moldura da Janela afirma, pois, seu talento e inventividade em transfigurar o jogo da vida em jogo de palavras, arte que desenvolve sem esforço, com segurança e domínio estilístico.

Aíla Sampaio

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Natal

Lourdinha Leite Barbosa

Braços se abrem, largos sorrisos,
passos adentram solar amigo.
Não trazem ouro, incenso ou mirra,
mas dizem versos, que espargem luz.
Vêm repetir gestos antigos,
compartilhar os seus escritos.
Braços se fecham num forte círculo
Fazem cirandas e cantam hinos
E abraçam unos o Deus Menino.