segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Emendando o tempo




                           Lourdinha Leite Barbosa

A agulha do tempo costura a bainha dos dias
perdidos nas verdes veredas da inocência.
Tempo das primaveras, esgarçadas quimeras

debruçadas nas carcomidas cercas.

Das chuvas que lavam o alpendre e as dores apascentam.

Risos e vozes infantis ainda ressoam
entre paredes inexistentes.

A figura do meu pai esfuma-se na curva do caminho e
retorna a galope no vento.

Eterno é o tempo.

Os sonhos perdidos são molambos

pendurados nos varais da mente.

Da juventude o calor, do interdito o medo.
Água represada na nascente.

domingo, 5 de agosto de 2012

"Um tempo sem nome"

Rosiska Darcy de Oliveira, O Globo, 21/01/12

Com seu cabelo cinza, rugas novas e os mesmos olhos verdes, cantando madrigais para a moça do cabelo cor de abóbora, Chico Buarque de Holanda vai bater de frente com as patrulhas do senso comum. Elas torcem o nariz para mais essa audácia do trovador. O casal cinza e cor de abóbora segue seu caminho e tomara que ele continue cantando “eu sou tão feliz com ela” sem encontrar resposta ao “que será que dá dentro da gente que não devia”.

Afinal, é o olhar estrangeiro que nos faz estrangeiros a nós mesmos e cria os interditos que balizam o que supostamente é ou deixa de ser adequado a uma faixa etária. O olhar alheio é mais cruel que a decadência das formas. É ele que mina a autoimagem, que nos constitui como velhos, desconhece e, de certa forma, proíbe a verdade de um corpo sujeito à impiedade dos anos sem que envelheça o alumbramento diante da vida .

Proust, que de gente entendia como ninguém, descreve o envelhecer como o mais abstrato dos sentimentos humanos. O príncipe Fabrizio Salinas, o Leopardo criado por Tommasi di Lampedusa, não ouvia o barulho dos grãos de areia que escorrem na ampulheta. Não fora o entorno e seus espelhos, netos que nascem, amigos que morrem, não fosse o tempo “um senhor tão bonito quanto a cara do meu filho“, segundo Caetano, quem, por si mesmo, se perceberia envelhecer? Morreríamos nos acreditando jovens como sempre fomos.

A vida sobrepõe uma série de experiências que não se anulam, ao contrário, se mesclam e compõem uma identidade. O idoso não anula dentro de si a criança e o adolescente, todos reais e atuais, fantasmas saudosos de um corpo que os acolhia, hoje inquilinos de uma pele em que não se reconhecem. E, se é verdade que o envelhecer é um fato e uma foto, é também verdade que quem não se reconhece na foto, se reconhece na memória e no frescor das emoções que persistem. É assim que, vulcânica, a adolescência pode brotar em um homem ou uma mulher de meia-idade, fazendo projetos que mal cabem em uma vida inteira.

Essa doce liberdade de se reinventar a cada dia poderia prescindir do esforço patético de camuflar com cirurgias e botoxes — obras na casa demolida — a inexorável escultura do tempo. O medo pânico de envelhecer, que fez da cirurgia estética um próspero campo da medicina e de uma vendedora de cosméticos a mulher mais rica do mundo, se explica justamente pela depreciação cultural e social que o avançar na idade provoca.

Ninguém quer parecer idoso, já que ser idoso está associado a uma sequência de perdas que começam com a da beleza e a da saúde. Verdadeira até então, essa depreciação vai sendo desmentida por uma saudável evolução das mentalidades: a velhice não é mais o que era antes. Nem é mais quando era antes. Os dois ritos de passagem, que anunciavam o fim do trabalho e da libido, estão, ambos, perdendo autoridade. Quem se aposenta continua a viver em um mundo irreconhecível que propõe novos interesses e atividades. A curiosidade se aguça na medida em que se é desafiado por bem mais que o tradicional choque de gerações com seus conflitos e desentendimentos. Uma verdadeira mudança de era nos leva de roldão, oferecendo-nos ao mesmo tempo o privilégio e o susto de dela participar.

A libido, seja por uma maior liberalização dos costumes, seja por progressos da medicina, reclama seus direitos na terceira idade com uma naturalidade que em outros tempos já foi chamada de despudor. Esmaece a fronteira entre as fases da vida. É o conceito de velhice que envelhece. Envelhecer como sinônimo de decadência deixou de ser uma profecia que se autorrealiza. Sem, no entanto, impedir a lucidez sobre o desfecho.

”Meu tempo é curto e o tempo dela sobra”, lamenta-se o trovador, que não ignora a traição que nosso corpo nos reserva. Nosso melhor amigo, que conhecemos melhor que nossa própria alma, companheiro dos maiores prazeres, um dia nos trairá, adverte o imperador Adriano em suas memórias escritas por Marguerite Yourcenar.

Todos os corpos são traidores. Essa traição, incontornável, que não é segredo para ninguém, não justifica transformar nossos dias em sala de espera, espectadores conformados e passivos da degradação das células e dos projetos de futuro, aguardando o dia da traição. Chico, à beira dos setenta anos, criando com brilho, ora literatura , ora música, cantando um novo amor, é a quintessência desse fenômeno, um tempo da vida que não se parece em nada com o que um dia se chamou de velhice. Esse tempo ainda não encontrou seu nome. Por enquanto podemos chamá-lo apenas de vida.

segunda-feira, 30 de julho de 2012


PERDIDOS & ACHADOS


                                                                         Lourdinha Leite Barbosa
Caminhava como quem se perde de propósito. Ao virar uma esquina, seus olhos encontraram os dele. Olhos tristes de quem já sofreu muitos revezes. Não se tocaram, mas se entenderam. Ele acompanhou-a silenciosamente. A cada passo, olhava-a como se pedisse um afago. Apiedada, ela acariciou sua cabeça e ele encolheu-se de prazer e lambeu sua mão.
Era um vira-lata solitário, e ela, tocada, decidiu levá-lo para casa. Não mais precisariam se perder

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

A arte de engolir palavras

                                                                                         Aíla Sampaio
 
Escrever é uma arte e, como toda arte, requer perícia. No caso da literatura, pode-se dizer que o texto é ‘tecido’ pela arte de engolir e ‘desengolir’ palavras, numa atitude consciente da criação. Lourdinha Leite Barbosa, em seu livro de contos “A arte de engolir palavras” já anuncia esse processo a partir do título da obra, que Vicência Jaguaribe bem marcou como uma reflexão metalinguística. O conto homônimo é uma metáfora desse exercício, sem dúvida.

Embora se saiba que a inventividade não decorra de técnicas, mas do poder de captar, da imaginação, da observação ou da memória, a matéria sensível que dá ‘vida’ aos enredos, percebe-se, nos contos de Lourdinha, o apuro formal de quem bem domina a técnica do conto. Sua frase enxuta e seus enredos concisos mostram um trabalho de linguagem cuidadoso, elaborado com precisão e consciência. A teoria literária, como as tantas teorias do texto, se diluem no uso de recursos como a intertextualidade, o efeito fantástico e a ambigüidade. Seus textos não subestimam o leitor, ao contrário, convidam-no ao mergulho, à prospecção, à construção da lógica (ou da subversão dela) que subjaz nas entrelinhas.

Fantástico, gênero que se estabelece a partir de um acontecimento não explicável pelas leis da razão, está presente em pelo menos seis das narrativas do livro. Destaca-se a sutileza com que a autora consegue construir o clima extranatural, de forma tão harmoniosa, ao trabalhar um tema tradicional como ‘o duplo’, no conto “A viagem” (p.32).

É este um dos mais antigos temas explorados pela literatura, tendo aparecido mais notoriamente no século XIX, quando vieram a lume as produções de E. T. A. Hoffmann, Edgar Allan Poe, Guy de Maupassant e Dostoievski. A sua origem, no entanto, remonta à Antigüidade Clássica, pois, como afirma Clément Rosset (1976:61), “os personagens de Sósia ou de irmão-gêmeo ocupam um lugar no teatro antigo, como no Anfitrião ou em Os Menecmas de Plauto”. O tema ultrapassa a expressão literária, estendendo-se, ainda, à pintura e à música.
O desdobramento do eu que, na realidade, vem possibilitar o encontro desse eu consigo mesmo, resulta, geralmente, de um conflito existencial que leva o sujeito a buscar a sua verdadeira essência. Clément Rosset (1976) afirma que a restituição desse eu, ou seja, essa “reconciliação de si consigo mesmo” (p. 77), ansiada pelo indivíduo em conflito, só é possível através da aniquilação do duplo. Já na literatura romântica, conforme assinala o filósofo, ocorre o contrário, pois “a perda do duplo, do reflexo, da sombra não é [...] libertação, mas efeito maléfico” (p. 78). A destruição do duplo implica a destruição do eu. No seu ponto de vista, inclusive, o duplo não passa de uma ilusão: “Quem repete não diz nada, quer dizer, não é nem capaz de repetir-se. O original deve dispensar qualquer imagem: se não me encontro em mim mesmo, reencontrar-me-ei ainda bem menos no meu eco. É preciso então que eu seja suficiente, por menor que seja ou pareça na realidade: porque a escolha se limita ao único, que é muito pouco, e ao seu duplo que não é nada (ROSSET, 1976: 83-4).
A narrativa do conto “A viagem”, de Lourdinha, não dá nenhuma pista sobre a moça, que não tem nome nem idade ou qualquer característica que faça o leitor criar uma imagem. Sua aparição dá-se já quase como um ser etéreo, que vai ao encontro do seu destino. Seu? “Tinha encontrado o misterioso bilhete, com a hora da viagem, o número do guichê e o código, sobre a mesinha de cabeceira do namorado e resolvera descobrir aonde ele ia e com quem”. Logo ela se apercebe que “varou a noite sem saber o motivo e o destino da viagem” e questiona se realmente estaria ali por acaso.

Sem entender , após dar a senha ao ‘homem alto e magro’ do guichê, recebe o tíquete e um livro de capa azul sem qualquer inscrição. Também sem autor e com um título em língua desconhecida, o livro traz textos em língua inteligível e desenhos estranhos: “um ovo, contendo uma figura metade macho, metade fêmea, sobre um dragão alado; um pássaro de asas abertas, cuja sombra era uma figura humana; uma cruz, cujos braços terminavam em triângulos, e embaixo de cada braço, um círculo com um quadrado dentro. Uma seta feita à mão, apontava para um deles: um círculo sextavado, com vários círculos concêntricos, interrompidos em certos pontos”. O mistério se ‘concretiza’ e o significado da senha – Hâdi – bem como do símbolo indicado pela seta, causam certa inquietação no leitor. A personagem, entretanto, limita-se a tentar decifrar o símbolo e a incomodar-se com o vazio na estação, no restaurante e no próprio trem. Só no vagão indicado no tíquete há pessoas.

Assustada com a ausência de estrutura para a viagem – não há sequer camareiro ou funcionário no trem- ela, após percorrer todos os vagões e perceber que não há ninguém, retorna ao seu e se dirige às pessoas, demonstrando seu nervosismo na tentativa de compreender a situação. Os passageiros, na tranquilidade dos que já tudo entenderam, respondem-na com certo desvelo, como a se darem conta de que ela precisa se acalmar: “Os dois velhinhos pareciam não ter entendido. A senhora de meia-idade procurou acalmá-la”; “contemporizou o homem de olhos azuis”; “Todos se entreolharam”; “A jovem de cinza acompanhou-a”. Solenes como os mortos, os passageiros do trem deslizam sobre os trilhos, em velocidade lenta e, sem saberem aonde ou a que vão, chegam a uma estação iluminada, sem indicações; ‘um prédio deserto de paredes completamente brancas e nuas’. A reação da moça, a única a, aparentemente, não saber o que se passa, é de ‘calafrio’, solidão, medo.
O Fantástico vai-se construindo no insólito dos acontecimentos, na ausência de explicações para a situação incomum, na inquietude do comportamento da personagem – assustada, nervosa -, no espaço sem identificação, híbrido como a morada dos mortos... A senha ‘Hâdi’ indicaria uma passagem para a morada de Hades? Perdida no labirinto da passagem entre a vida e a morte, ela decifrou o símbolo e lembrou dos jogos da palavra cruzada, de desenho idêntico... mas sua saída foi o sono, o entorpecimento da consciência até a chegada ao ‘fim da linha’. Não se sabe se esse sono se dá antes ou após a descida na estação iluminada. Não há notações temporais contínuas.

O leitor atento não hesita, sabe que o percurso no trem foi a preparação para a irrupção do insólito; de dentro do trem, ela enxerga seu próprio vulto a esperá-la na estação: “Aos poucos, foi divisando o prédio da estação e um vulto solitário de pé na plataforma. Ao acercar-se, faltou-lhe o ar e todo o seu corpo ficou paralisado pelo pavor: a mulher que da plataforma a fitava era ela mesma”. Embora a personagem esboce reação ante o sobrenatural, o Fantástico se estabelece de forma bastante sutil – moderna, pode-se dizer -, pois a morte não é tratada de forma maléfica, tampouco o vulto que aparece traz contornos de um fantasma; não na acepção do reaparecimento de uma alma penada, que volta à vida para causar assombro, mas da aparição de uma mulher que não sabe sua condição e mantém o seu antigo aspecto, longe das formas indefinidas e evanescentes (HOLANDA, 1986: 757), próprias do fantasma tradicional.

Como já se falou, procurando concretizar essa ilusão – o duplo –, a literatura fantástica explora tanto a restituição quanto à aniquilação do eu. A linha mais tradicional segue a trilha da literatura romântica que, como citou Rosset, percebe na destruição do duplo a aniquilação do próprio eu. Já a moderna, concebe esse encontro como a restituição desse eu, ou seja, essa “reconciliação de si consigo mesmo”. Qual seria o caso do conto “A viagem? Ora, é exatamente a ambigüidade o princípio constitutivo do Fantástico nesse conto: estaria a personagem apenas sonhando e acordara? O conto, possivelmente carregado da preocupação existencial da autora, teria colocado na moça as inquietações humanas dos que se encontram pedidos de si e buscam reencontrar-se? Ou estaria ela mesmo morta, fazendo a viagem simbólica à ‘morada dos mortos’? O discurso não permite respostas e é, certamente, nessa incerteza que o Fantástico se consolida.

BIBLIOGRAFIA:

FERREIRA, Aurélio B. de H. Novo dicionário da língua portuguesa. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

FURTADO, Filipe, A construção do fantástico na narrativa. Lisboa: Livros Horizonte, 1980.

JAGUARIBE, Vicência Mª Freitas. Sobre a arte de engolir palavras e suas outras artes. In: LEITE BARBOSA, Lourdinha. A arte de engolir palavras. Bagaço, Fortaleza, 2002 pp.77-95.

LEITE BARBOSA, Lourdinha. A arte de engolir palavras. Bagaço, Fortaleza, 2002.

ROSSET, Clément. O real e seu duplo, 1976.

TODOROV, Tzvetan . Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 1975.