quarta-feira, 6 de maio de 2009

A viagem

Chegou atrasada à estação e dirigiu-se ao guichê nº 3. Deu a senha: Hâdi. O atendente, um homem magro e alto, olhou-a fixamente, através das lentes grossas, e pediu que aguardasse um pouco. Voltou com um livro na mão e perguntou-lhe se estava preparada para a viagem. Só depois da resposta afirmativa, entregou-lhe o tíquete e o volume encadernado.

Tinha poucos minutos para chegar à plataforma 7 e pegar o trem.. Entrou no vagão e procurou o seu assento. A excitação a dominava. Sentou-se, tentando manter a calma. Antes de abrir o livro, observou cuidadosamente as poucas pessoas ao redor. Na sua fileira, estava um homem de paletó, lendo uma revista. Ao se sentir examinado, ele levantou a vista e fixou-a com olhos azuis profundos. Uma fila à frente, sentava-se uma senhora de meia idade, vestida com correção. Nas primeiras poltronas, dois velhinhos conversavam animadamente. Uma jovem, que vestia um terno cinza e segurava uma pasta de couro, escolhera um lugar próximo à janela. O que essas pessoas teriam em comum com seu namorado?

A capa do livro não trazia qualquer inscrição. Na primeira página, havia uma palavra, que devia ser o título, numa língua desconhecida, e nada mais, sequer o nome do autor. Passou as páginas e viu que seria inútil tentar entender algo. Além do texto, havia inúmeros desenhos, alguns bem estranhos: uma figura dividida ao meio, uma metade macho e outra fêmea, dentro de um ovo, que se equilibrava sobre um dragão alado; um pássaro de asas abertas, cuja sombra era uma figura humana; uma cruz, cujos braços terminavam em triângulos e, embaixo de cada braço, um círculo com um quadrado dentro. Em uma das páginas, alguém havia rabiscado uma seta, que apontava para um círculo sextavado, com vários círculos concêntricos, interrompidos em determinados pontos. Concentrou sua atenção nesse símbolo, procurando decifrá-lo.
O trem ganhou velocidade e foi engolido pela escuridão. Não passavam por nenhuma vila ou cidade. A ansiedade impedia seu raciocínio. Será que os outros passageiros também viajavam para o desconhecido? Ela estava ali por acaso. Ou não?

Tinha encontrado o misterioso bilhete, com a hora da viagem, o número do guichê e o código, sobre a mesinha de cabeceira do namorado e resolvera pegar o trem no lugar dele para descobrir aonde ele ia e com quem. Isso só podia ser coisa de mulher. Sorrateiramente, apossou-se do bilhete e decidiu descobrir por si mesma. Agora, varava a noite, sem conhecer o destino ou o motivo da viagem.

Sentiu sede e dirigiu-se ao restaurante, mas lá não havia viva alma. Continuou atravessando os vagões até o último: todos vazios. Voltou assustada. Seus companheiros de viagem continuavam tranqüilamente em seus lugares. Nervosa, disse, em voz alta, que o único vagão ocupado era aquele em que estavam. Todos se entreolharam perplexos. Os dois velhinhos falaram entre si, como se não tivessem entendido. A senhora de meia idade procurou acalmá-la:
— Nesta hora, os passageiros são raros.
— E o restaurante, por que não está funcionando?
— Talvez por causa do horário e do percurso, que é curto.
Contemporizou o homem de olhos azuis.
— Tão curto, que nos deixam sem água?
— Podemos pedir ao camareiro.
— O senhor viu algum camareiro ou outro funcionário qualquer desde que saímos?
Depois da saída, nenhum empregado entrou neste vagão.
De repente, a velocidade diminuiu e um forte clarão surgiu à frente. Lentamente se aproximaram de uma estação tão iluminada, que ela pensou que o dia estivesse nascendo. Quando o trem parou de vez, ela desceu e a jovem de cinza a acompanhou. Procuraram uma indicação que lhes informasse onde estavam, mas não havia qualquer letreiro. O prédio estava deserto e as paredes completamente brancas e nuas. Sentiu um calafrio, segurou o braço da companheira e voltaram correndo a seus lugares. O homem de paletó marinho afirmou que não havia motivo para agitação.
— Pode ser que a estação ainda não tenha sido inaugurada.
Justificou.
— E qual o motivo de tanta iluminação?
— Devem ter esquecido de apagar as luzes.

Bobagem! Insatisfeita, ela lembrou-se do livro. Não o encontrando sobre a cadeira onde o havia deixado, abaixou-se para ver se tinha caído. Estremeceu, ao ouvir a voz da senhora de meia-idade:
— Está procurando isto? Não resisto à curiosidade quando vejo um livro. Que língua é esta? Conheço muitas, mas nunca vi nada semelhante.
— É uma língua indígena.

Desconversou e tomou o volume das mãos da mulher. Nisto, notou que os velhinhos não estavam no vagão. Correu até à janela e respirou aliviada, ao ver que o casal caminhava de volta, apoiando-se um no outro.

Examinou mais uma vez a figura do círculo sextavado: os círculos se embaralhavam e confundiam. Lembrou-se de que, quando criança, seu pai costumava comprar uma revista, que trazia palavras cruzadas, advinhas, jogos e um deles era semelhante ao desenho, só que, no centro, havia sempre um animalzinho perdido. Sua tarefa era ajudá-lo a encontrar a saída. O que isso tinha a ver com a viagem? Essas pessoas estariam em perigo?

Cochilou um pouco e acordou meio confusa. Percebeu que o trem se arrastava lentamente. Olhou para fora e nada viu. Os passageiros arrumavam seus pertences como se, ali, fosse o fim da linha. Ao longe surgiu o prédio de uma estação e, pouco a pouco, pôde divisar uma figura feminina, sozinha de pé na plataforma. A máquina estacionou e a moça, lentamente, virou o rosto para ela. Ficou paralisada pelo pavor: a mulher que da plataforma a fitava era ela mesma.

Um comentário:

Anônimo disse...

Este conto possibilita inúmeras leituras que indiciam vida e morte.
Aliás não se sabe onde uma termina e a outra começa, ou seja, são a mesma coisa.