sexta-feira, 24 de abril de 2009

Sete palmos, sete chaves, sete salmos

Sete palmos, sete chaves, sete salmos
para Bia Jucá

Embaixo de sete palmos
Estão mortos sepultados
Meus ardores, meus ciúmes,
Meus anseios, meus cuidados.

Embaixo de sete chaves
Estão presos, bem guardados,
Meus louvores, meus queixumes,
Meus anseios, meus chamados.

Embaixo de sete salmos
Estão selados, lacrados,
Meu destino, desatinos,
Meus amores olvidados.
Amor sem limites

Para agradá-lo troco de pele,
corto o cabelo. Se duvidar,
viro ao avesso, conto até mil
e, nua em pelo, deito no colo
do sete-estrelo.

Para alegrar nosso chamego,
faço uma fogueira, convido a lua,
e vaga-lumes trago ligeiro,
peço que fiquem nos meus cabelos,
iluminando como sendeiros.

E quando o tempo se esgarçar,
invento nuvens para cobri-lo,
invoco deuses para niná-lo.
Quem sabe assim agradecido
me surpreenda com uma cantiga
suave, terna e muito antiga.

quinta-feira, 23 de abril de 2009

Sobre A arte de engolir palavras e outras artes



Sobre A arte de engolir palavras e outras artes
(Vicência Maria Freitas Jaguaribe. Professora da Universidade Estadual do Ceará)

Engolir é correlato de alimentar e nutrir, e pressupõe desengolir, expelir. Sugere, portanto, uma reflexão metalingüística que contempla os dois momentos da produção artística: apropriar-se, pela percepção e pelo sentimento, do mundo e dos seres que o habitam e, depois, recriá-los pela palavra-arte. É um processo de conhecimento que, quando expelido no ato de contar histórias, lembra-nos de que as palavras “narrar”, “narrativa” e “narrador” têm relação etimológica com a raiz sânscrita gnâ, que significa “conhecer”. Foi, pois, feliz Lourdinha Leite Barbosa, quando resolveu dar a seu primeiro livro de contos o título “A arte de engolir palavras”, que também intitula uma de suas narrativas breves.
Essa pequena narrativa fantástica põe em cena uma personagem que, ao longo da vida, foi obrigada a engolir as palavras, ao invés de expressar com elas seus sentimentos. Certo dia, não suportando mais a situação, começou a expeli-las. A expulsão resultou benéfica e ele aprendeu a manejar as palavras: deglutia-as e regurgitava-as num ato de prazer. Não é necessária nenhuma ginástica mental para ver que a situação inusitada do conto ilustra o fazer literário e as dificuldades desse fazer: o engolir as palavras representa os processos de leitura e conhecimento do mundo, e a sua expulsão, a expressão artística. Observemos como termina a narrativa:

Degustava as palavras com prazer. Elas desciam suavemente e voltavam em contextos nunca dantes experimentados. Agora era a moça que gostava de ouvi-lo e ele, de ter as palavras à mão, examiná-las, sopesá-las, conhecer sua sonoridade e consistência. O tempo ensinou-lhe a manejá-las. Ainda que algumas, mais ariscas, não se deixassem dominar. Vez ou outra sofria um revés: por se sentirem muito desejadas, esquivavam-se, fugiam. Ele, então, era forçado a substituí-las, porém ficava sempre na boca uma ou outra letra e o gosto amargo do indizível.

“A arte de engolir palavras” integra, com mais cinco contos, (“Vozes que se revelam”, “Poça d’água”, “Cerco”, “A viagem”, “Uma paisagem quase perfeita”), a parte da coletânea que contempla a narrativa fantástica. Os outros catorze são de natureza mimética ou realista, no sentido mais geral desse termo.

As outras artes
Constata-se que, na coletânea A arte de engolir palavras, a preocupação da autora não é o real concreto, porém os conflitos existenciais decorrentes da inserção das personagens nesse real. Tanto é que o tempo e o espaço, na quase totalidade dos contos, são indeterminados, havendo somente sugestões ora de que o fato transcorre em uma cidade do interior, num tempo já passado, como em “Um caso delicado”, ora de que os eventos se passam nos tempos atuais e em uma cidade grande, como em “Vozes que se revelam”.
É principalmente a alma feminina que se encontra no centro das atenções da autora: é a grandeza trágica da condição de ser mulher. Temos quase sempre a mulher fraudada, pelo homem, pela família, pela vida, na sua capacidade de amar e confiar incondicionalmente; a mulher na busca de autoconhecer-se e na tentativa de autopreservar-se. Quase sempre uma mulher que luta e encontra uma saída e um novo motivo para continuar a viver. É justamente nas narrativas que expressam a condição feminina que a sensibilidade criadora de Lourdinha Leite Barbosa mais se patenteia. É essa, portanto, a primeira arte revelada pela autora – exprimir os dramas femininos com a propriedade de quem os captou pela sensibilidade.
A segunda arte revela-se no domínio da difícil técnica do conto, senão em todas as suas pequenas histórias, pelo menos em um bom número delas: a concisão e a precisão da linguagem, a economia dos detalhes, a capacidade da sugestão, virtudes de um bom contista, parecem-nos as marcas de “Bumerangue”, “Tudo em seu devido tempo”, “A decisão”, “Uma paisagem quase perfeita”, “Cerco”, “Retalhos” e “Vida em três tempos”.
A terceira arte está na feitura dos diálogos, em nossa opinião, um dos grandes entraves da narrativa literária. Construir um diálogo que pareça natural sem se tornar caricaturesco; que não sejam palavras vazias que nada dizem sobre a essência do fato narrado constitui-se uma das grandes armadilhas postas ao escritor, e que Lourdinha consegue driblar. Em três contos da coletânea – “Vozes que se revelam”, “A viagem” e “Nó Cego” –, a armadilha se apresentou: a autora tinha diante de si três boas oportunidades de escorregar no diálogo artificial ou desinteressante, mas o leitor é surpreendido por uma interlocução que flui naturalmente, num simulacro perfeito do real, como podemos constatar na passagem seguinte:
(...) A senhora de meia idade procurou acalmá-la:

- Nesta hora os passageiros são sempre raros.
- E o restaurante, por que não está funcionando?
O homem de olhos azuis respondeu:
- Talvez por causa do horário e do percurso, que é curto.
- Tão curto que nos deixam sem água?
- Podemos pedir ao camareiro.
- O senhor viu algum camareiro ou outro funcionário qualquer desde que saímos?

As artes da mimese
Embora os argumentos das vinte narrativas que compõem a obra variem – a autora vai da traição amorosa ao desejo incestuoso; do despertar do amor e da sensualidade à demência senil; da loucura aos conflitos provocados pelo amor homossexual –, por todas elas perpassa, como fio condutor e como veio subterrâneo, o sentimento da frustração. As personagens são homens e mulheres privados da satisfação de um desejo ou de uma necessidade, na maioria das vezes, não porque não tentaram, mas porque algo – um obstáculo externo ou interno – se interpôs em seu caminho.
Os desencontros amorosos são, sem dúvida, o grande motivo das frustrações dos seres ficcionais criados por Lourdinha Leite Barbosa. A mulher abandonada pelo marido é o argumento dos contos “Tudo em seu devido tempo” e “A decisão”. Nos primeiros tempos que se seguem à separação, ela se entrega à dor, pois que o abandono é pior que a morte: “Se fosse por morte, talvez sofrêssemos menos”. Fecha-se em seu mundo de sofrimento, ao qual nem mesmo as pessoas mais íntimas têm acesso; mas, de repente, não por um motivo qualquer, mas porque simplesmente acabou o tempo do sofrimento, pois para tudo há um tempo, ela emerge do abismo e toma a vida nas mãos.
Poderíamos começar a leitura de “Tudo em seu devido tempo” pelo capítulo 3 do Eclesiastes: Para tudo há um tempo, para cada coisa há um momento debaixo dos céus (...).
O narrador de terceira pessoa desse conto, como o de muitos outros, parece um mero recurso da autora para emprestar à narrativa uma ilusão de objetividade, pois quem na realidade acaba filtrando os fatos para o leitor é a própria protagonista, por meio da técnica do discurso indireto livre, que soa quase como um monólogo. O narrador não-personagem começa a relatar os fatos, mas, de repente, sem aviso prévio, transfere a palavra para a protagonista, uma vez que a dor não pode ser compartilhada e somente aquele que sofre é capaz de expressar o sofrimento:
Respondeu de chofre:

- Pouco importa. Está feito!
E fechou-se em silêncio. Que falassem o que quisessem, nada mudaria o seu penar. Nascemos sós e vivemos sós, essa é a grande verdade. Por mais que haja solidariedade, quem pode sentir a nossa dor? Aqueles que nos amam conhecem a impotência de não poder viver nosso sofrimento, que é só nosso.

À intensidade dos sentimentos da protagonista (intensidade que lhe foi conferida pela dor) opõe-se a superficialidade de sua irmã Marta, “com seus conselhos cristãos e sua felicidade permanente”. E a protagonista se pergunta: “Como ela conseguia estar sempre alegre?”.
Já dissemos no início dessas considerações que em seus melhores contos Lourdinha Leite Barbosa é econômica nos detalhes e eficiente na capacidade de sugestão. É o que acontece no último parágrafo desse conto, em que as ações e os pormenores descritivos do ambiente têm a importante função de sugerir o renascer da personagem: é a réstia de luz que invade o quarto; é a água que escorre pelo seu corpo; são as cores verde e rosa da roupa e do batom; é a mesa bem posta com um café gostoso; são as flores de Irene. Todo esse aparato dá sustentação à imagem concreta da frase “De repente fez-se o avesso”.
As imagens concretas são, aliás, um dos recursos empregados pela autora para expressar a intensidade do sofrimento no conto “A decisão”. Também nesse conto a personagem, abandonada pelo companheiro, mergulha no sofrimento e dele emerge inesperadamente, resolvendo sepultar o passado. Essa decisão materializa-se pela encenação da morte do marido, no final da narrativa, que obriga o leitor a voltar ao início do conto: “Nem quando perdera a mãe o sofrimento tinha sido tamanho. Mas a morte é uma coisa; traição, outra bem diferente”. Era necessário, então, simular a morte do marido para enterrar o sofrimento.
Mas observemos como a autora consegue exprimir esse sofrimento por meio das já referidas imagens construídas sobre elementos concretos: são metáforas e comparações que, ativando as percepções sensoriais do leitor, intensificam as sugestões da dor da protagonista: “plantara com cuidado em terreno fértil”; “como uma bola que alguém sopra, lentamente, até a borracha se esgarçar e explodir”; “Soprando, soprando. Estourou.”; “A matéria purulenta irrompeu de vez”; “as palavras boiavam na superfície, não tinham peso para descer às profundezas da alma”; “tentativas de romper a crosta”.
Em “Vida em três tempos”, temos também um desencontro amoroso: não o abandono nos moldes em que vimos acontecer nos dois contos analisados anteriormente, mas a separação decorrente do desgaste provocado pelo tempo, pela rotina, pela difícil vida a dois, ou melhor, pela indiferença a dois, como a autora deixa entrever nas frases finais: “Enrodilhou-se na velha poltrona, companheira de desilusões, de concessões, de indiferença, fiando e desfiando o interminável instante. Já não eram um. Sem nada dizer. Fingindo não ver, não ouvir. Brigar para quê?”.
O conto, montado sobre uma sugestão intertextual com o poema “Marília de Dirceu”, de Tomás Antônio Gonzaga, inverte, no entanto, os valores dessa obra: no poema árcade, a conjunção amorosa se dá, apesar (ou por causa?) da distância física; no conto, o desencontro ocorre apesar (ou por causa?) da proximidade física. A certa altura da Lira I, quando o sujeito poético diz que os dois amantes, depois de mortos, descansarão sob a mesma terra, podem-se ler os seguintes versos: “Na campa, rodeada de ciprestes, / Lerão estas palavras os Pastores: / ‘Quem quiser ser feliz nos seus amores, / Siga os exemplos, que nos deram estes”. Pois a leitura do conto nos autoriza a inverter esse conselho: quem quiser ser feliz nos seus amores, não siga os exemplos que nos deram estes.
As relações intertextuais se expressam não só no nome dos protagonistas – Marília e Dirceu –, mas também no tom inicial do discurso, impresso pela escolha do vocabulário, principalmente dos adjetivos, e por uma ou outra construção sintática, como a anteposição do adjetivo no sintagma “sonhadora face”: “Voltou aos dias fugazes de uma existência dourada, quando os sinais do tempo ainda não tinham maculado a sonhadora face. Aos bandos, como aves inquietas, passavam de leve, aqui e ali, com seus olhos brilhantes que fitavam o longe, o infinito”.
Progressivamente o tom vai mudando, até que no quarto parágrafo as relações intertextuais se rompem, como a autorizar o leitor a inverter o sentido do poema de Gonzaga. Observemos a descrição da noite que abrigava os amores do casal: “Quando anoitecia, Marília era de Dirceu. Enveredavam por ruas salpicadas de letreiros de gás néon, perdiam-se em andanças por entre bares e boates enevoados de anéis de fumaça, dançavam pelas calçadas de mãos dadas ou se encastelavam enamorados, sussurrantes, desatados da realidade”. É um ambiente que se opõe ao espaço idílico em que viviam Dirceu e Marília no poema árcade. A frase inicial, com os verbos no pretérito imperfeito, apontam para um par amoroso que tanto pode ser o do conto como o do poema, e sugere algo que foi e não é mais. O leitor pode ligar essa frase a uma outra do segundo parágrafo – “Poema antigo”, que tanto se refere ao poema de Tomás Antônio Gonzaga, como ao “poema” vivido pelo par moderno Dirceu e Marília. Esse jogo de ambigüidades, que, como sabemos, enriquece o texto literário, repete-se no terceiro parágrafo: “exigia da mulher bem mais que um simples salto, talvez um salto mortal”, em que o substantivo salto pode ser lido em dois sentidos.
O conto termina com um jogo entre os numerais “dois” e “um”: “Ficaram os dois. (...) Já não eram um”. Levando-se em conta que dois é o “não um”, e um é o “não dois”, a idéia da separação e do seu corolário, a solidão, é reiterada nesse parágrafo: o casamento, que deveria transformar os parceiros em “um só corpo e em uma só alma”, acaba por dividir em dois o que antes era um.
Em “Bumerangue” e em “Aqui, ali, acolá”, temos duas mulheres em fuga, num processo de busca por condições de sobrevivência. Em “Bumerangue”, como o próprio título sugere, a protagonista, depois de fugir de uma situação que, embora a autora não deixe muito claro, parece ter sido a de uma relação amorosa mal resolvida, acaba, por obra do destino, enfrentando situação semelhante. Foi tal e qual um bumerangue que, depois de descrever curvas, volta ao ponto de partida. Parece que, nesse conto, avulta um certo determinismo, uma certa idéia de que é infrutífero lutar contra o destino.
Ressalte-se, dentre outras características desse conto, a concisão, que, para nós, faz dele um dos melhores da coletânea. Há uma riqueza de sugestões, que substituem as explicitudes, e o leitor é obrigado a aceitar as regras impostas pelo narrador: ele precisa preencher os inúmeros vazios do texto para poder atribuir-lhe um sentido. Fica por conta do leitor inferir sobre o passado da protagonista, sobre o motivo da primeira partida e das desavenças com um “ele”, ligeiramente introduzido na narrativa. Observem-se, ainda, as delicadas sugestões da conjunção amorosa entre a protagonista e o “rapazola franzino”: “Nas noites de luar, a lua atravessava as folhas da velha ingazeira e desenhava arabescos nos corpos entrelaçados”. É essa nova relação que a leva a empreender uma nova fuga: o bumerangue voltara ao ponto de partida.
Observe-se como a autora consegue expressar o sofrimento e a angústia da protagonista por meio de frases curtas, sincopadas, mas principalmente por meio de frases nominais que às vezes se sucedem num processo acumulativo, sugerindo uma sensação de angústia, como nas seguintes ocorrências: “Todos os dias. O entorpecimento.”; “Colheita de feijão. Colheita de milho. Colheita de algodão. Farinhada. O esquecimento.”; “Murmúrios. Numerosos. Desavergonhada! Ainda um menino!”.
É de notar, ainda, a maneira como a autora trabalha a palavra, nos parágrafos sete e oito, para indicar o interesse do “rapazola” pela protagonista: “os olhos mornos pesavam sobre ela” / “o peso dos olhos mornos sobre ela”. Nessas duas expressões ela emprega o recurso da sinestesia, que mistura num mesmo processo perceptivo as sensações de peso e de calor. E, ao substituir o verbo “pesar” pelo substantivo “peso”, consegue ainda sugerir um aumento da sensualidade da personagem.
“Penitente”, uma narrativa que desenvolve o motivo do amor incestuoso, traz também, num plano menos aparente, o drama da carência afetiva e da solidão. Conta o conflito de um rapaz que mora sozinho com a irmã, de quem cuidara desde a morte dos pais. Os dois vivem num lugar ermo, um tendo somente a companhia do outro. O fato é que, quando a irmã entra na adolescência, o rapaz começa a desejá-la, sendo atormentado pela culpa. A autora não deixa muito claro se o incesto se consumou, mas o rapaz passa a vagar pelas noites, autoflagelando-se, gemendo e rezando pelo perdão divino, o que faz com que as pessoas espalhem boatos de que o povoado está sendo atacado por um lobisomem.
Esse conto tem muitas afinidades com “O Peregrino” , de Moreira Campos, no qual se consuma uma ligação incestuosa entre um sertanejo chamado Belarmino e a viúva de seu filho. Só que, enquanto no conto de Moreira Campos a relação se dá sem nenhum conflito moral em virtude do primitivismo das personagens, no de Lourdinha Leite Barbosa desenvolve-se a cadeia que denuncia estarem as personagens num nível mais avançado de consciência: da tentação ao ato incestuoso (ou ao desejo de que ele se realize?), que provoca a culpa e o arrependimento, o qual leva à penitência e à esperança da redenção. No conto “Penitente”, manifesta-se a moral cristã na figura de um padre, que ameaça o rapaz com a presença do demônio. Já em “O Peregrino”, o moralismo cristão é amenizado porque aparece na figura de um romeiro, que demonstra no seu primitivismo uma maior compreensão do mundo e de suas dores: “Não teve recriminações bíblicas. Cessaram ali as chamas do pecado, das condenações eternas. Apagou-se o fogo do inferno. Talvez tivesse tido a intuição de que a palavra de Deus era pequena ou grande demais para compreender a necessidade e a solidão”.
É bom notar que a consciência da culpa é tão forte no “Penitente” que ela se materializa na figura do lobisomem, encantamento que, numa das versões da lenda, dá-se em expiação pelo pecado do incesto. No conto, a figura do lobisomem, além de estar na imaginação dos habitantes do povoado, parece manifestar-se no próprio comportamento do rapaz que, nas noites de lua cheia, corria pelas ruas do povoado, gemendo e orando. E diz o narrador, a certa altura do texto: “Ao encontrar uma clareira, espojou-se no chão uivando”.
Merece algumas considerações o conto “A valsa proibida”, que, embora explore um outro argumento, tem como tema a frustração, que desta vez se manifesta não pelo desencontro amoroso, mas pela impossibilidade de concretização de um sonho de vida: a realização artística pelo teatro. No final da vida, a protagonista, Mirta, uma das poucas a quem a autora dá nome nos contos dessa coletânea, monta uma encenação que irá redimi-la de “Uma vida que não se completara. Ficara só nos ensaios”.
A técnica narrativa é a que a autora vem empregando na quase totalidade das histórias da coletânea: um narrador de terceira pessoa, de onisciência total, que às vezes cede a palavra à protagonista, num recurso pelo qual ela se desvela: “Mas era uma questão de ponto de vista, por mais que explicasse suas razões, nenhuma delas compreendia o sentido desse acontecimento. Só ela sabia. Todos esses anos suportando o peso de uma vida vazia. Que desperdício! Tudo por culpa dele.”; “E os seus sonhos não contavam? Os anos de preparação, impostação, gargarejos, agudos e graves? Uma vida que não se completara. Ficara só nos ensaios”.
Nessa narrativa, por meio do recurso do flash-back, o passado se mistura com o presente, para explicá-lo e justificá-lo. E é em um desses movimentos de retorno ao passado que se ouve o julgamento do pai da protagonista sobre a carreira que a filha gostaria de abraçar, expressando uma visão de mundo característica de um tempo em que a vida artística era vedada às jovens de boas famílias: “Não criei filha para subir em palco”; “Que clássico, que nada. É tudo igual. Enquanto estiver sob o meu poder, não sobe em palco”.

As artes do fantástico
Entende-se por narrativa fantástica aquela em que o âmbito do sobrenatural invade o âmbito do natural, geralmente desestruturando-o. Essas narrativas focalizam um fenômeno não explicável pela razão e trabalham, dentre outros, com motivos como o duplo, o retorno ao passado, a ressurreição, a possessão, a metamorfose e a imortalidade. Já dissemos em trabalho anterior (JAGUARIBE, 1997) , que
Pondo em cena o sobrenatural, o gênero fantástico coloca o ser humano diante de mistérios insondáveis e leva-o a perceber que existe algo além do real concreto em que ele vive. Essa percepção o faz encarar a sua impotência diante dos fenômenos do universo, podendo levá-lo ao medo, ao desespero, à morte e, com menos freqüência, à satisfação ou a uma saudável dúvida.
Dentre as seis narrativas fantásticas da coletânea, merece menção a pirandelliana “Vozes que se revelam”, que bem poderia ter intitulado o livro, pelos questionamentos que sugere sobre a criação literária. Pois o que é a literatura senão a expressão de uma voz ou de um concerto de vozes que se revelam para emprestar ao mundo um sentido? O conto se concretiza em uma situação inusitada: a protagonista, Marcela, começa, misteriosamente, a ouvir vozes femininas que lhe parecem familiares, mas que ela não consegue identificar. Depois de algum tempo, consegue relacioná-las a personagens de obras literárias conhecidas: Capitu (de D. Casmurro); Doralina (de Dôra Doralina); Macabéa (de A Hora da Estrela) e Diadorim (de Grande sertão: veredas). A primeira reação do leitor é enxergar uma correspondência entre esse conto e a peça do escritor italiano Luigi Pirandello (1867-1936), Seis Personagens à Procura de um Autor .
Nessa obra, seis personagens irrompem num palco, no momento em que um diretor ensaia uma peça: são personagens esboçadas, mas abandonadas por um dramaturgo, que não escreveu a peça onde elas deveriam ganhar vida; sim, porque, como seres de ficção, só ganhariam vida dentro de uma obra. É o que diz uma das personagens (o Pai) sobre a arte teatral: “Dar vida a seres vivos, mais vivos que aqueles que respiram e vestem roupas! Menos reais, talvez, porém mais verdadeiros”. Esses seres criados pela imaginação estão à procura de um autor que possa escrever o texto teatral que conte sua história. No conto de Lourdinha Leite Barbosa, a situação se inverte: as personagens já tiveram sua história escrita e parecem querer pular da ficção para a vida, num movimento contrário ao das personagens de Pirandello, que querem pular da “vida” para o texto: “ (...) o autor que nos criou vivos não quis, depois, ou não pôde, materialmente, meter-nos no mundo da arte. E foi um verdadeiro crime, senhor, porque quem tem a sorte de nascer personagem viva, pode rir até da morte. Não morre mais! Morrerá o homem, o escritor, instrumento da criação; a criatura não morre jamais!”.
Como obra teatral, a peça de Pirandello propõe questionamentos diferentes daquele que o conto em análise propõe: o direito a uma identidade, num mundo em que o homem, massificado, perde sua autonomia, seu direito de ser um entre outros uns. Parece-nos ser isso o que nos quer dizer Marcela na reflexão final do conto: “Chegaria o dia em que elas teriam que repetir suas falas. Não tinham autonomia para mudá-las. O texto. Estavam presas ao texto, não podiam sair dele. E ela, Marcela, teria voz própria?”.
Mas as vozes não seriam outras vozes da própria Marcela? Não seria a própria Marcela em conflito com seus “outros”, num confronto inevitável a que todos nós somos levados um dia?
A narrativa se faz num ritmo nervoso, que ilustra a angústia vivida pela personagem: a autora constrói frases curtas que nos momentos de maior tensão se atropelam umas sobre as outras, como se pode ver na seguinte passagem: “Subitamente todo seu corpo se retesou. Segredavam-lhe alguma coisa. Procurou manter a calma. O murmúrio foi-se tornando mais claro”. Mais uma vez o narrador de terceira pessoa divide com a protagonista a responsabilidade de contar a história: de vez em quando ouve-se a personagem em discurso indireto livre, como se a voz do narrador fosse incapaz expressar toda a comoção de que ela está sendo tomada: “Coitada! Quanta dor e mágoa em suas palavras! Com quem falava?”; “Então, o que as ligava entre si? O que queriam dela, afinal?; “Meu Deus!... (...) Como pôde Riobaldo enganar-se com essa voz? Medo de saber que o coração do jagunço estava, como o seu, tomado de amor?”.
A leitura de “Cerco” põe-nos novamente diante do drama existencial da frustração. A certa altura da vida, o protagonista se dá conta de que tudo a sua volta começa a ruir: perde a mulher, o emprego, os amigos; até os filhos parecem abandoná-lo. Esse acúmulo de pequenas tragédias é representado pelo encolhimento do espaço em que vive a personagem, daí o título do conto. À proporção que as paredes vão se aproximando e sua roupa e sapato encolhendo, o homem entra em desespero e a narrativa termina com a sugestão de sua morte, que seria a capitulação às contingências da vida.
Diante da situação insólita, o homem tenta racionalizar: “Talvez tudo não passasse de alucinação.”; “Será que essas coisas estavam mesmo acontecendo ou seriam seus nervos?”. Essa é uma das características da narrativa fantástica. Na impossibilidade de entender o que está afetando o equilíbrio de sua vida, as personagens sempre procuram uma explicação que desfaça a sensação de estranheza que as está dominando. Pois é também essa a atitude dos seres humanos diante de fenômenos inexplicáveis. A necessidade de uma explicação coerente para determinados acontecimentos nos faz buscar justificativas que vão do sonho ou pesadelo à farsa, ao nervosismo e até à loucura. Para o homem, a possibilidade de estar ensandecendo é mais confortável do que a de estar sendo dominado por um fenômeno sobrenatural.
Observe-se que o impacto do conto sobre o leitor decorre em grande parte da condensação do texto: os fatos são fornecidos sem detalhes, como acontece com a notícia inicial da separação; quando alguma explicação é dada, a autora o faz de forma tão rápida e crua que vai deixando no leitor uma sensação de desconforto: “outra rasteira: despedido por contenção de despesas”. As relações entre as frases também são muitas vezes suprimidas, de forma que as informações vão se acumulando como se também fechassem um cerco: “(...) a mulher pediu que fosse morar noutro lugar. Mudou-se para uma pequena casa e levou seus objetos pessoais.”; “Uma mudança sem grandes sustos. Tinha dois filhos casados, cinco netos e a certeza de ser amado por eles”.
“Uma paisagem quase perfeita” é, sem dúvida, a mais bela realização dessa coletânea, por isso o deixamos para o final de nossas considerações. A história, também fantástica, é de uma trágica beleza: cinco irmãs vivem enclausuradas em um mundo criado pela imposição do pai, um mundo sem sons, sem alegria; um mundo de confinamento, quando elas “sonhavam com grandes espaços, vastidões sem fim”. Do outro lado de seu mundo limitado estava “o infinito”, com o qual elas só podiam sonhar. Eram dois espaços que não se podiam misturar. Mas, apesar de tudo, elas iam vivendo. Até que um dia aquele espaço foi invadido pelo outro, representado por um jardineiro: “O pai permitiu que uma figura masculina penetrasse no mundo feminino”. Essa intromissão bastou para que o mundo das cinco irmãs começasse a esfacelar-se. Enquanto elas foram resguardadas, o seu mundo foi preservado; bastou, no entanto, o contato ainda que indireto com o outro lado para que se manifestasse a inquietação e se desse o esfacelamento. Enquanto não havia sido divisado o outro lado, as irmãs puderam prosseguir vivendo, embora precariamente; bastou, todavia, que esse outro lado fosse vislumbrado para se tornar impossível a existência de um único mudo isolado.
A autora consegue com muita propriedade, por meio da imagem dos pequenos incêndios, sugerir a energia oriunda do contato entre os dois pólos – o negativo (o mundo das irmãs) e o positivo (o mundo do jardineiro). Não há, na realidade, como se poderia pensar em uma primeira leitura, a simples sugestão da completude sexual no sentido ordinário; há mais: há a sugestão maior da completude entre o princípio feminino e o masculino, sem a qual não existe equilíbrio. O desequilíbrio provocado pelo interdito acaba por destruir as cinco irmãs.
Observe-se que nesse conto os elementos invertem-se, se considerarmos o que costuma acontecer na narrativa fantástica: o casarão, com sua realidade assustadora, espaço que toma ares fantasmagóricos, é perturbado pela invasão do natural – o jardineiro. A própria narradora refere-se a essa invasão como um “acontecimento inesperado”. E é a presença desse elemento natural que vai desencadear a situação fantástica.
Diferentemente dos outros contos, este apresenta um narrador de terceira pessoa que não cede a voz às personagens, nem pelo discurso indireto, nem pelo indireto livre, muito menos pelo direto. O silêncio que imperava no casarão propaga-se pela instância narrativa e as emudece. A estrutura narrativa circular (o final do conto repete o parágrafo inicial) intensifica ainda mais a sugestão de isolamento do casarão: um grande muro parece ter sido erguido ao redor da construção para impedir a penetração do que está do outro lado, intensificando o interdito.
Observe-se a relação que a autora estabelece entre os nomes e as características das personagens e o processo degenerativo que acaba por destruí-las: Clara escureceu; Margarida amarelou e despetalou; Magnólia (a mais gordinha) murchou e liquefez-se; Aurora (alegre e falante) emudeceu e Eugênia (a que tinha a responsabilidade sobre as irmãs) enlouqueceu e explodiu em chamas. É como se o processo destrutivo atingisse a própria essência desses seres, para quem não haveria possibilidade de salvação fora do contato com o outro mundo que fora vislumbrado.

Com permissão da arte
Sendo instância fundadora, a palavra não poderia deixar de ser, também, instância destruidora. Eis o perigo que corremos quando nos propomos estabelecer uma interlocução com o discurso artístico. Será nossa palavra capaz de desvelar, a título de crítica, de análise ou de simples comentário, a complexidade desse discurso? Há sempre o perigo da empatia, da parcialidade, do gosto, dos valores, que podem nos levar a enfatizar o que tem menor peso, ou a desprezar o que tem algum valor.
Mas, já havendo corrido esse risco, só me resta assumir a responsabilidade por tudo que me atrevi a dizer até aqui e pelo que direi a partir de agora.
Os contos de A arte de engolir palavras conseguem falar fundo à alma do leitor, principalmente porque, em sua maioria, navegam sobre um substrato de universalidade. Em boa hora se constata que, nestas paragens do Nordeste brasileiro, mais um escritor consegue se libertar do vício da escritura com gosto regionalista e fala dos dramas do homem enquanto ser humano apenas, independente do espaço em que se situa.
Sem dúvida, nem todas as pequenas histórias da coletânea de Lourdinha Leite Barbosa merecem aplausos, ou porque o discurso narrativo não flui com a desenvoltura esperada de um bom contista, porque as personagens não têm a consistência desejada, ou ainda porque o signo não atingiu o nível do artístico. Mas essas são poucas, e esse julgamento deixamos por conta de cada leitor em particular. Há, no entanto pequenas jóias, como “Uma paisagem quase perfeita” ou “Tudo em seu devido tempo”. O saldo é, realmente, positivo.
Sem pretensões de revolucionar a arte de contar histórias e ficando num território que lhe é familiar(pois só se fala bem daquilo que se conhece), a autora mostra-se uma competente contadora de histórias a nos abrir portas e janelas para um mundo que, embora conhecido – e talvez mesmo por esse motivo –, fora neglicenciado pelos nossos olhos.

terça-feira, 21 de abril de 2009

Descortinando a paisagem quase perfeita


A produção literária de Lourdinha Leite Barbosa dispensa qualquer comentário. Alguns críticos especializados já se encarregaram de destacar seus contos e ensaios, incluindo seus trabalhos em conceituadas publicações.

O domínio da linguagem e o apuro da correção permeiam sua obra e denotam a intimidade com que a autora lida com a palavra. A originalidade de suas criações incita a nossa imaginação e comprova a qualidade estilística de sua escrita. Entretanto, isso não é tudo, como leitora, espero mais do que um texto bem escrito; é preciso seduzir e enredar o leitor com uma boa história. Essa é a arte que Lourdinha sabe fazer com talento e sensibilidade; tanto que, aqui e ali, somos instigados a mergulhar novamente em seus contos em busca de novos desdobramentos.

Quando relemos uma história, algo novo se revela, renovam-se as possibilidades de leitura. Esta que se segue é apenas uma sobre “Uma paisagem quase perfeita”, inúmeras outras poderão ser realizadas.

As protagonistas desse conto transitam numa atmosfera simbólica, deixando silenciosamente vestígios de dor e desesperança. São cinco mulheres sem brilho, sem cor e sem voz. A casa é sua prisão, o carcereiro, o pai castrador e habilidoso em submetê-las à lei. Como repressor de suas vidas eróticas, é ele que limita o gozo e barra seus impulsos desejantes. O “casarão antigo” nos remete ao passado. Lá, afetos e lembranças são guardados “num porão escuro”, obscuro e enigmático, arquivo de suas fantasias femininas. O “grande quintal cheio de árvores” é um lugar proibido, onde elas receiam aventurar-se. A autoridade paterna, introjetada em seus egos, deu origem a um superego ameaçador e exigente.

A “paisagem quase perfeita” emoldura e paralisa as cinco mulheres amordaçadas, caladas à força. Ali, “Não se ouviam vozes”, embora as vozes interiores não sossegassem e teimassem em se manifestar, pois “todas sonhavam com grandes espaços, vastidões sem fim”. Nos sonhos, seus desejos se realizam de forma disfarçada, dando-lhes a ilusão de que seus espaços se expandem em direção a um objeto que mantém e reaviva constantemente a pulsão erótica. Assim, a “ausência de sons” não impede que o discurso de suas almas silenciosas seja melodiosamente embalado “pelo barulho do vento nas folhas e o gemido das dobradiças no vaivém de portas e janelas”.

O equilíbrio é mantido pelas interdições: “não rir muito, conversar pouco”. Elas se defendem da desconfortante e inesgotável atividade de Eros, sublimando seus desejos nas contas do “rosário que eram obrigadas a rezar todas as noites”. A ordem era “rezar sempre”, buscando compensar suas frustrações, deslocando o prazer para a satisfação espiritual e o transcendente.
Esgotadas pelo isolamento e incompletas pela ausência do outro, que as constituiria como sujeito, as cinco mulheres são surpreendidas por um “acontecimento inesperado”: “O pai permitiu que uma figura masculina, penetrasse no mundo feminino”. Aqui, a autora lança mão da ambigüidade da palavra “penetrar” e, através da sugestão, oferece indícios das conseqüências dessa intromissão.

Se, como afirma George Bataille, o desejo prepara uma fusão na qual se misturam dois seres em busca de continuidade e completude, vemos então que o outro é essencial para que um sujeito entre na dialética lacaniana, ou seja, tenha como objeto do seu desejo ser o objeto do desejo do outro. Além do mais, com a suspensão da lei paterna, instala-se a transgressão, elemento da atividade erótica.

A partir daí, o silêncio é quebrado e o desejo violentamente exposto; regras e limites são violados em busca do prazer disfarçadamente resignado ao confinamento. Convém lembrar que, para Freud, o que é reprimido sempre retorna e o retorno do recalcado cobra um preço: a angústia que advém do conflito entre o princípio do prazer e o princípio da realidade. A narrativa ganha uma vivacidade própria e, uma a uma, as cinco mulheres são envolvidas por “uma onda de calor que se propaga pela propriedade”. Ligam-se os corpos, os seres e as coisas; a quantidade de calor é excessiva para quem sentia sua vida reduzida a cinzas.

Assim, “Clara foi a primeira a escurecer”, assustada com o fascínio que exercia no outro. Ao negar oferecer-se como objeto brilhante, “terminou retinta, negra como a escuridão”, que insistia em não abandonar. “Margarida amarelou”, desvirginada “se desnudou”. Criou vida própria, espalhou sementes onde antes a terra era estéril. “Nesse dia o pai teve que abrir as portas” e permitir a vazão da paixão que rompia regras impetuosamente. Magnólia “desmanchava-se em água”. Fervia. Não houve como retê-la, “escorria pelo piso e ganhava as ruas”. O grande reservatório libidinal rompeu-se sob o jugo do princípio do prazer. Magnólia dissolveu-se no desejo do outro. Já Aurora, “tão solar, emudeceu”. Voltou à obscuridade, angustiada pelo medo de ser punida. “A voz calou” e optou por repetir o fracasso e conviver com a dor já conhecida. Por precaução, cerrou os lábios que “desapareceram para sempre”. Eugênia, “enlouquecida, explodiu em chamas”. Ateado o fogo transformador, que ardia como brasa sob o silêncio, o efeito foi devastador. Não suportou a embriaguez de tanto oxigênio. Iluminou a “paisagem quase perfeita” como fogos de artifício.

Não é por acaso que, mais uma vez, Loudinha Leite Barbosa traduz em cenas de rara beleza as inquietações e expectativas do universo feminino. Afinal, o centro das atenções da autora é a grandeza trágica da condição de ser mulher, conforme ensaio de Vicência Jaguaribe (2001).
A nosso ver, o conto, “Um paisagem quase perfeita”, pode ser interpretado como uma metáfora do desejo. As cinco personagens revivem, através do pai, a atualização constante da castração, criadora da falta. Como seres faltosos, vivem em busca de algo que foi perdido para sempre e, se foi perdido, jamais será reencontrado. A princípio, a insatisfação é sublimada e a angústia canalizada para a oração, porém a entrada em cena do outro modifica o quadro.

A intromissão se dá pelo relaxamento da lei paterna e, como conseqüência, elas são tomadas, incondicionalmente, pelo princípio do prazer. O excesso de energia, recalcado por anos a fio, investe libidinalmente este outro que passa a ser visto como objeto de seus desejos. Deixam-se, então, levar pelas exigências da pulsão erótica que anseia à liberação total.

O conto de Loudinha Leite Barbosa tem como tema a resposta metafórica que cada uma das cinco mulheres dá a excitações pulsionais tão intensas. Regidas pela lógica do desejo que toma proporções extremamente invasoras, todas são psiquicamente afetadas e o resultado é um desfecho trágico e destruidor.

Somos inclinados a duvidar que a obtenção absoluta de prazer cause tanto dano. Entretanto, se aceitarmos que é a tensão gerada pelo antagonismo entre a pulsão de vida e a pulsão de morte (Eros e Tanatos), o que nos mantêm vivos e, se compreendermos que o que nos mobiliza é a incansável busca de um objeto que preencha aquilo que nos falta, fica claro que a eliminação absoluta da tensão é hipotética e que a falta nos constitui enquanto sujeitos.

Somos, assim, condenados a satisfazer, apenas parcial e moderadamente, nossos anseios. A saída é a aceitação da impotência e da incompletude; o contrário seria destrutivo para o equilíbrio de nosso aparelho psíquico, pois a satisfação total imobilizaria o circuito do desejo e a ausência de tensão significaria o retorno ao estado inorgânico, ou seja, a morte.

Desconsiderando que se faz necessário impor algum controle às exigências de Eros, as cinco mulheres sucumbem no esforço de preencher o vazio e zerar a excitação interior, permitindo seu total escoamento.

Tanto é verdade, que o próprio Freud fundamentou sua interpretação da interdição como uma necessidade primitiva de proteger o homem do excesso de desejos. Como esclarecimento, vale lembrar que o desejo não se refere apenas às satisfações genitais, mas a todo tipo de satisfação humana. As cinco personagens do conto não poderiam encontrar um final diferente: explodir, calar-se, dissolver-se, despetalar-se e escurecer.

O intrigante é que com todo este rebuliço a paisagem continuou igual: “quase perfeita não fosse a ausência de sons”.

Bia Jucá - Psicóloga.

Bibliografia:
FREUD, S. O Ego e o Id. In: Edição Standart Brasileiradas Obras Completas de Sigmund Freud. v. XIX. Rio de Janeiro: Imago, 1979.
MEZAN, Renato. Freud pensador da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1990.
NASIO, J. David. Os 7conceitos cruciais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
BATAILLE, Georges. O erotismo. Porto Alegre: LP&M, 1987.LEITE BARBOSA, Lourdinha. A arte de engolir palavras. Recife: Bagaço, 2001.

segunda-feira, 20 de abril de 2009

Dos valores do Inimigo e de outros valores presentes na narrativa de Pedro Salgueiro.




Lourdinha Leite Barbosa*
* Mestra em Literatura Brasileira pela UFC e escritora, com várias publicações. Professora da UECE

Resumo

O presente trabalho realiza uma leitura do livro Dos Valores do Inimigo (2005), do contista cearense Pedro Salgueiro, buscando compreender a divisão da obra, analisar as lacunas, as obscuridades e o silêncio, ou seja, as características dos contos de mistério que os diferenciam dos contos fantásticos, examinar as recorrências de motivos e elementos narrativos responsáveis pela intratextualidade um dos aspectos relevantes da obra do autor.

Palavras-chave: Conto contemporâneo. Conto realista. Conto Fantástico. Conto de Mistério.
Abstract This study performs a reading of the book values of Enemy (2005), the contista cearense Peter Osborne, trying to understand the division of work, analyze gaps, the ambiguities and silence, ie the characteristics of tales of mystery that differentiate the fantastic stories, examining the recurrence of reasons and factors responsible for intratextualidade a narrative of the relevant aspects of the work of the author. Keywords: Tale contemporary. Tale realistic. Fantastic Tale. Tale of Mystery.

Introdução

Alguns contos de Pedro Salgueiro mantêm um tênue equilíbrio entre o fantástico e o mistério e, por isso, têm sido motivo de inúmeras discussões. A despeito de sua aparente simplicidade, Machado de Assis, em 1873, já reputava ser o conto um gênero bastante difícil.

Distinguir as várias formas de narrativa tem confundido estudiosos da literatura, que, com freqüência, deparam-se com obras de ficção que não se enquadram nos cânones tradicionais. Macunaíma é exemplo dessa ultrapassagem de fronteiras, o próprio Mário de Andrade, por considerar inapropriado chamá-lo de romance, denominou-o de rapsódia. Num dos livros já antológicos de ensaios sobre o conto - What is the short story?, os organizadores E. Current Garcia e W. R. Patrick (1961) selecionaram textos gerais da bibliografia teórica sobre o conto, cujos autores se dividem entre os que propõem definições e a procura da forma e os que manifestam revolta contra regras e definições prescritivas. Nádia Gotlib, em Teoria do Conto (1985), afirma que a força da teoria pode aniquilar a própria vida do conto.

O conto contemporâneo é produto da complexidade dos novos tempos. Antes havia um modo de narrar que considerava o mundo como um todo, mundo que o escritor conhecia, compreendia e dominava com o seu saber onisciente; depois, com a transformação que a nossa civilização vem sofrendo desde o início do século XX, o caráter de unidade da vida e conseqüentemente da obra vai desaparecendo e acentuando-se o caráter de fragmentação. Como afirma Bosi: “posto entre as exigências da narração realista, os apelos da fantasia e a sedução do jogo verbal, ele (o conto) tem assumido formas de surpreendente variedade”. Cabe aos teóricos rever continuamente os conceitos e acrescentar-lhes as inovações postas em circulação.

1 Dos valores do inimigo: divisão da obra

Dos Valores do Inimigo é uma seleção de contos curtos, alguns já publicados, dividida em: “Acontecimentos”, “Dos Valores do Inimigo” e “Soluço Antigo”. Nas três divisões, há contos de raízes realistas – realismo no sentido de imitação ou adesão ao real, contos de mistério e contos fantásticos – na perspectiva moderna de um fenômeno que foge às leis da razão, mas já não causa tanto impacto sobre as personagens, que também não aparecem revestidas de um aspecto sinistro.

Procuramos entender o sentido de unidade da obra a partir do título de cada uma das divisões. A primeira divisão, denominada “Acontecimentos”, indicia uma maior preocupação com o relato em si, que pode ser extraordinário, como nos contos de Edgard Allan Poe, em que o acontecimento é intenso, ou um fato sem nada de excepcional, produto de uma intensa elaboração, próprio dos contos de Maupassant. Já a segunda divisão, “Dos Valores do Inimigo”, que dá título à obra, parece procurar um equilíbrio entre o acontecimento e as personagens e, por fim, a terceira, “Soluço Antigo”, em que o autor parece seguir o exemplo de Tchekhov, ou seja, buscar libertar o conto de um de seus preceitos fundamentais: o acontecimento.
2 Das lacunas, das obscuridades e do silêncio.

Alguns contos de Salgueiro que, à primeira vista, julgamos fantásticos, se examinados com mais vagar, percebemos que, na verdade, são narrativas misteriosas, uma vez que lhes falta o fenômeno insólito, ou seja, um acontecimento que transgride as leis da razão, condição indispensável ao gênero fantástico.

Para criar a atmosfera de mistério, de sombra e de ambigüidade, Salgueiro explora com mestria um recurso bastante utilizado pelo romance policial: a insuficiência de informação. Oscar Tacca, em As Vozes do Romance, afirma que grandes escritores se valeram desse desajuste de informação, dentre eles Stendal, Balzac, Robbe-Grillet e Gide. Acrescenta ainda que boa parte do mistério, do clima alucinado e da obscuridade da obra de Faulkner tem origem nesse constante recusar-se a saber, de seus personagens, aquilo que provavelmente nem eles mesmos sabem.
Em “Vislumbre”, narrativa que abre a coletânea, um narrador de primeira pessoa mostra-se abalado emocionalmente com o recebimento de cartas misteriosas. O texto inicia-se no tempo presente, com a frase - “O que não foi, é”, ouvida pelo personagem, cujo sentido nem ele nem o leitor compreendem. A partir dessa frase, que se repete em sua cabeça, o personagem-narrador vai revelando, através da técnica do flash-back, alguns acontecimentos do dia anterior e confundindo-os com fatos de um passado mais remoto (tempo de criança). Informações essenciais para a compreensão da fábula são, intencionalmente, escamoteadas a fim de criar uma atmosfera de mistério e incitar o interesse do leitor, que chega ao fim do relato cheio de interrogações e sem nenhuma resposta concreta. No último parágrafo, o personagem entende tudo, sabe que foi enganado e que não há mais retorno; ao passo que a nós leitores só restam conjecturas. O narrador, o autor da carta e toda a cidade parecem saber o que ocorreu, mas o leitor jamais saberá.

“A Fotografia” segue a mesma linha de “Vislumbre”. Novamente um narrador de primeira pessoa fala de Laura, uma mulher envolta num mistério tão grande, que ele próprio está quase convencido de que ela não existira, talvez fosse produto de sua imaginação. O acontecimento, em si, é aparentemente insignificante: Laura conseguira, com muito esforço, permissão da família para viajar com o noivo e, depois de três meses, volta sozinha. Sem proferir uma palavra, deixa-se morrer aos poucos com o olhar perdido no infinito. Todo o registro dessa vida está sintetizado em quatro linhas, o mais são tentativas inúteis, feitas pelo narrador, para saber o que acontecera naquela viagem. Todos silenciavam como se o casal não tivesse existido. A única pista é uma fotografia do noivo, tirada durante a viagem, que o narrador vê de relance, antes que a mãe dela a tome bruscamente de suas mãos, conforme a passagem abaixo:

O que vi na foto não lembro, devo ter bloqueado a memória devido ao susto, porém, se não recordo... sinto no mais íntimo do meu coração... (p. 15)

A fala do narrador é cortada por reticências, que sugerem uma amnésia ou a perda da lucidez já posta em questão por ele mesmo anteriormente. Estaria ele envolvido com o caso?
Nesse conto, as informações são negadas também ao narrador, que não pode, portanto repassá-las ao leitor. A lógica da narrativa exige, para criar essa atmosfera ambígua e imprecisa, um narrador de primeira pessoa, cuja onisciência restringe-se a ele mesmo. Assim, narrador e leitor têm o mesmo grau de conhecimento dos fatos, ou seja, nenhum:

Até os desafetos da família silenciavam, como se tudo que passou, como se aquelas vidas nunca tivessem existido... e eu me senti um louco tentando com que os outros me explicassem algo que só existia em mim. (p.15)

A mesma técnica de construção lacunar, com algumas variações, vai se repetir em “Destino”. Desta feita um narrador de terceira pessoa inicia o texto fazendo comentários a respeito da narrativa e previsões sobre o acontecimento que será narrado:

Capricho tolo este de querer que as histórias tenham sempre uma explicação, um desfecho razoável. Inutilmente buscamos entender tudo – como se qualquer acontecimento tivesse conclusão lógica: mas a vida nos prega peças a todo instante. (p.18)

O texto estabelece um diálogo com o conto anterior “Fotografia”, através da recorrência temática e de motivos narrativos. Ambas as personagens são mulheres que tentam realizar-se através do amor e terminam frustradas e sem voz, uma vez que provêm de família patriarcal em que, por direito, a voz pertence ao pai.

Os fatos se organizam num enredo de estrutura simples obedecendo à ordem lógica de causa e conseqüência. Do mesmo modo que ocorreu com a protagonista de “Fotografia”, a personagem viaja com o amado, volta sozinha depois de dois dias, enclausura-se em um quarto nos fundos da casa e cala-se para sempre. De acordo com o narrador, o motivo da ruptura jamais será revelado. As lacunas existentes neste conto são menores e dizem respeito somente aos dois dias de duração do casamento, cujo fracasso o narrador já havia antecipado para o leitor (não só pela maneira como se conheceram, por meio de um anúncio em revista de novela, mas também por suas vivências opostas: ele, no mar a maior parte dos dias e ela, numa cidadezinha perdida no interior).

Olhos de Cão e Rasga-Mortalha são contos que seguem a mesma técnica narrativa das lacunas e dos hiatos, em ambos um narrador externo sabe menos que as personagens. Em Olhos de Cão, o acontecimento se dilui e o espaço cede lugar a uma atmosfera onírica e alucinante. Composto de um só parágrafo compacto, o conto se inicia com a descrição de uma cena captada por uma câmera pequena e escura (o narrador parece encontrar-se num plano superior ou por trás da câmera) que, descontrolada, rasteja pelas coxias, sobe muros, telhados e focaliza pessoas que saem assustadas de becos escuros. Pode-se dizer que duas cenas compõem a narrativa: uma noturna, em que pessoas sorrateiras tiram velhos papéis dos bolsos e os pregam em paredes de casarões em ruínas e outra diurna (“...afugentadas pelos primeiros raios de um sol laranja e orvalhado”), na qual uma pequena multidão se forma em torno dos papéis disputando-os a cotoveladas (“e as pessoas voltavam a ter sombras”). Devido ao ambiente, parece tratar-se de ação costumeira, realizada por estudantes na época da ditadura, pois, para dar uma maior ilusão de realidade, o autor situa o acontecimento num espaço real: as ruas do Benfica, lugar freqüentado pelo cineasta (já falecido) Eusélio de Oliveira a quem o conto é oferecido.
O leitor de Rasga-Mortalha percebe, logo no início do conto, que tempo, personagens e objetos não se encaixam:

Sempre no início da madrugada, se observava o estacionar de carros: seus passageiros, impecavelmente vestidos, traziam consigo estranhos objetos. (p. 25)
E o estranhamento cresce, à proporção que ele toma conhecimento dos objetos: um antigo arado enferrujado e sujo de barro, um pássaro enorme cujos pés estão metidos num saco de plástico e cujo bico está amarrado com tiras de pano. A casa também lembra os cenários das histórias fantásticas de Théophile Gautier, nas quais o antigo e decrépito propiciam a ocorrência do inexplicável:

A casa desabitada fazia muitos anos preservava em seus jardins galhos secos e retorcidos sobre os muros. Na cumeeira, um ninho de rasga mortalha, de quando em vez um ruflar de asas saindo pela clarabóia. (25)

Para completar o clima de mistério, existe uma figura sinistra: um homem alto, de cabelos grisalhos, barba rala e olhar profético. Está tudo preparado, mas falta o fenômeno insólito e a narrativa termina sem que o narrador descubra o que acontece dentro da casa.
Por tudo que foi exposto, esses contos podem ser considerados de mistério, e não fantásticos.
3 Dos contos fantásticos

“Invasão” é o primeiro conto fantástico da primeira parte e, como a maioria dos contos de mistério e fantásticos do livro, tem um narrador de primeira pessoa, que, segundo Todorov, é o mais indicado para a construção do gênero em análise.

Tendo como espaço uma cidade grande, com ruas iluminadas e altos edifícios, o ambiente não sugere qualquer acontecimento sinistro, embora seja madrugada, por isso o personagem narrador caminha tranqüilamente, pensando nas coisas que, de tão conhecidas, não são realmente notadas. Tomado por esses pensamentos ele pára em frente a seu edifício e observa-o demoradamente. A janela de seu apartamento está aberta e, de repente, ele vê passar dentro de sua sala de visitas uma silhueta magra. Fica intrigado com aquela presença estranha e senta-se no meio fio para pensar. Nisso percebe que as coisas familiares ao redor estão diferentes: a cor do prédio em frente não é a mesma; na esquina, ao invés da farmácia, há uma floricultura. Essas mudanças o deixam inseguro e perplexo.

O conto nos leva a refletir sobre a incerteza do real, sobre a veracidade do que vemos. Ou como afirma Barine (Arvède Barine – Poetes et névrosés, Paris: Hachette, 1908) “Quando a ciência nos ensina que uma ligeira alteração de nossa retina faria o mundo para sempre descolorido, ela sugere a todos o pensamento de que o mundo real poderia bem não ser senão uma aparência, como já os filósofos o sabiam”.

“A Passagem do Dragão”, baseado em acontecimento real - a comprovação da Teoria da Relatividade Geral, de Albert Einstein, por pouco não se tornou apenas um exemplo do fantástico-estranho. Logo no primeiro parágrafo, o narrador introduz o fenômeno insólito: o horror vivido pelos habitantes de um povoado, quando, em plena tarde, o sol tornou-se pálido e desapareceu de vez e, durante a escuridão, ouviu-se um forte bater de asas atravessando o vilarejo. Domina todo o texto um sentimento de estranheza, principalmente pela presença de três grupos de forasteiros, que chegaram ao lugar, uma semana antes do acontecimento, trazendo enormes caixas, das quais foram retiradas estranhas máquinas que apontavam para o céu.

O conto termina com os estrangeiros comemorando e tentando explicar ao povo o acontecido. Essa explicação do fato insólito caracteriza o estranho, mas a incerteza é introduzida novamente pelo comentário do narrador: “... porém não souberam explicar de onde surgiu e para onde foi o imenso pássaro que sobrevoou a vila na escuridão”.

Como o discurso pode desvanecer o fantástico a qualquer momento, Salgueiro pôs em risco o gênero, ao colocar a nota de roda pé explicando a origem do conto.

Brincar com Armas, narrativa que dá título a um outro livro do autor, também é um fantástico atenuado, quase um estranho, porque o narrador, após o fim da narrativa, acrescenta um P.S. explicando por que a arma estava carregada. Um leitor menos atento, não leva em conta a retificação, entre parênteses, de que o morto levara dois tiros no pescoço, embora a arma só houvesse disparado uma única vez.

“A festa” é a variação de uma história bastante conhecida: o narrador usa a primeira pessoa do plural, para contar como ele e sua companheira, durante uma viagem, tiveram que permanecer em uma localidade durante o réveillon e, no decorrer da festa, observaram algumas pessoas que, devido à aparência, destoava das demais com suas caras tristes e roupas fora de moda. Ao perceberem que eram observadas por eles, elas desapareceram. No dia seguinte, a dona da casa mostrou-lhes um velho álbum de fotografias de seus antepassados mortos e, para surpresa do casal, lá estavam todas aquelas pessoas estranhas, vestidas exatamente como estavam na festa.
Em Acontecimento, o narrador se encontra dentro de um ônibus, numa cidade movimentada e quente. É nesse espaço do cotidiano que vai emergir o sobrenatural. Ele levanta a cabeça para desatar o nó da gravata e, apesar de o sol forte ofuscar-lhe a visão, vê algo que o deixa tão aflito, que ele chega a perder a voz: “Um nó na garganta me impediu de gritar”. A personagem reage, tenta se comunicar com os vizinhos que se mantêm indiferentes. Utilizando o referido recurso da insuficiência de informação, o narrador não confessa o que viu, como se tivesse medo de nomear o extranatural. Diante da indiferença dos demais, ele hesita, já não tem certeza do que viu: “... e agora eu duvidava de tudo: do ônibus que parecia irreal, das pessoas que deviam ter saído de um sonho, desse calor infernal e daquele prenúncio de tudo o que estava para acontecer”. A personagem tenta fugir através do sono, mas quando desperta vê que nada mudou: a senhora gorda está se desmanchando, outros passageiros tornando-se avermelhados e ele vê subir de seus próprios ombros uma fumaça preta. Diante do impacto da estranha realidade, entrega-se às forças do sobrenatural. Como vemos, o narrador nega informações essenciais ao leitor, mas o acontecimento insólito deixa conseqüências e não é explicado.

4 Dos contos realistas

Dos dezessete contos da primeira divisão, apenas seis são realistas: “Procissão”, “No Carnaval”, “Esquecimento”, “Asas ao Vento”, “Todo Domingo às Três ou Balada de Consolo para Altino do Tojal” e “Pânico”. Também são realistas quase todos os contos da última divisão, “Soluço Antigo”, com exceção de “A rua do cemitério”, cujo humor dissipa o fantástico, pois a razão não permite que o gênero sobreviva, mas restam alguns resquícios de incerteza, como é o caso de “Jeremias ou o Vampiro da Rua das Flores”, em que o narrador, ao longo do conto, nega e confirma os fatos a respeito da personagem, deixando o leitor confuso; no final, entretanto, ele jura ter escutado choro de crianças ou latido de cães e a dúvida volta a rondar o leitor.

Nos contos realistas, os acontecimentos se organizam numa ordem lógica de causa e conseqüência, sem grandes rupturas, no máximo uma volta ao passado, e estão vazados, quase sempre, numa linguagem padrão ou coloquial, com alguns regionalismos: alpercata de rabicho, caviloso, lamparina, boquinha da noite, caneca de alumínio no beiço do pote.
Na última divisão, predominam os temas relacionados à velhice, como a solidão, a senilidade, a ambição familiar, o desamor, a morte. Vale ressaltar a capacidade de concisão conseguida pelo autor em “Soluço Antigo”, um conto brevíssimo que merece a nossa admiração. Nas três primeiras linhas, o narrador cria uma atmosfera fantástica que subverte o real; mas, nas duas seguintes, ao transcrever a fala da empregada, a natureza insólita do acontecimento se desfaz e o leitor é trazido de volta à realidade que o circunda.

5 Da recorrência de temas, motivos e elementos narrativos.

Pode-se afirmar que a intratextualidade é uma das características marcantes do texto de Salgueiro, seus contos mantêm uma constante relação dialógica entre si, seja em relação ao tema, seja em relação ao espaço ou acontecimento, ou mesmo à atitude de um personagem, o certo é que temos a impressão de já ter lido algumas passagens. Para exemplificar essa recorrência nos valeremos de contos da segunda e da terceira divisão da obra.

A maioria das narrativas tem como espaço cidades do interior, com sua igreja, sua estação, sua bandinha, sua gente simples que costuma sentar embaixo de árvores depois do almoço e na calçada à noitinha.


O conto fantástico “O Jogo de damas” apresenta um costume muito comum entre pessoas que vivem em pequenas cidades, que não oferecem muita diversão: jogar damas. Por ser um jogo popular que pode ser realizado em espaços abertos ou fechados e que não exige esforço físico, esse tipo de entretenimento, assim como o gamão, tem a preferência das pessoas mais idosas. Aliás, Salgueiro demonstra grande interesse por essa faixa etária que é o leitmotiv da terceira divisão do livro. Em várias passagens o jogo de damas está presente, exemplo disso são os contos “Ausência” (“O tabuleiro de damas continua empoeirado em cima da mesinha de cabeceira”) e “Em Família” (“Há anos deixou de jogar damas e já nem se lembrava mais das infindáveis partidas que ajudavam a vencer a quentura da tarde”).

O trem e a estação também são motivos recorrentes, talvez por ser o meio de transporte mais utilizado na época em que se passam as histórias. O certo é que há sempre um personagem descendo de um trem, como em “A Viagem” que se inicia com a seguinte frase: “Dom Eugênio descia do trem, pequena mala de viagem à mão e caminhava devagarinho pela rua empoeirada”. Em “Elefante” quem chega à cidadezinha é Gumercindo Freire: “Desde que avistou os primeiros telhados pela janela do trem, sentia-se perdido (...)”. Estes dois contos têm como tema o retorno à cidade natal e há trechos em que julgamos tratar-se da mesma cidade. “Madrugada” repete o motivo do trem (“Nesses dias eu escuto, com o ouvido colado à parede, o barulho do trem chegando ao povoado”) e descreve a mesma paisagem desolada já descrita em “A Viagem”, comparemos: “Aproximou-se da estação, o capim cobrindo tudo” (p.48) e “A estação vazia, o capim cobrindo a plataforma” (p.62).

Não se pode esquecer a predileção do autor por narrativas que tratam de crimes, principalmente crimes que têm por motivo a vingança: “O olhar”, “A longa espera”, “Elefante”, “Procissão”, “Pânico”.

Dois contos, “Pânico” e “A Rosa Encarnada”, mantêm um intenso diálogo entre si e levam o leitor, intrigado e seduzido, a uma releitura. Neles Salgueiro mostra, através de sua excelente técnica narrativa, como transformar um conto fantástico em um conto estranho.
Dos valores do inimigo oferece inúmeras possibilidades de leitura, esta é apenas uma delas, espera-se que outras venham contribuir para a compreensão da obra de Pedro Salgueiro.

Referências
BOSI, Alfredo. O conto brasileiro contemporâneo. São Paulo: Cultrix, 1989.
FURTADO, Filipe. A construção do fantástico na narrativa. Lisboa: Livros Horizonte, 1980.
GOTLIB, Nádia Battella. Teoria do conto. São Paulo: Ática, 1985.
LEITE BARBOSA, Maria de Lourdes D. A estranha máquina extraviada: uma escrita surpreendente. In: VestLetras: obras comentadas. Jornal O Povo, encarte. Fortaleza: Ed. Fundação Demócrito Rocha.
SALGUEIRO, Pedro. Dos Valores do Inimigo. Fortaleza: Edições da UFC, 2005.
SAMPAIO, Aíla. Tradição e Modernidade nos contos fantásticos de Lygia Fagundes Telles. Fortaleza: Dissertação de Mestrado da UFC, texto datilografado, 1996.
TACCA, Oscar. As vozes do romance. Coimbra: Livraria Almedina, 1983.
TODOROV, Tzvetan. Introdução à Literatura Fantástica. São Paulo: Perspectiva, 1992.
(Publicado da Revista de Humanidades da UNIFOR, 2008.2)

Uma paisagem quase perfeita




O casarão antigo, o porão escuro, o grande quintal cheio de árvores. Uma paisagem perfeita, não fosse a ausência de sons. Não se ouviam vozes. Só o barulho do vento nas folhas e o gemido das dobradiças no vaivém de portas e janelas.

As falas emudeceram há muito. Desde que as jovens mulheres da casa perderam a esperança. Eram cinco. Eugênia, a mais velha, tinha ordens do pai de cuidar das irmãs. Nunca gargalhar. Conversar pouco. Rezar sempre.A mais difícil de controlar era Aurora. Tão jovem e alegre. Vez por outra, assustava o silêncio com uma gargalhada sonora. Margarida, Clara e Magnólia, caladas e tristes, obedeciam às regras. Todas sonhavam com grandes espaços, vastidões sem fim e, quando não vigiadas, corriam à janela em busca do infinito, mas seus olhares não iam além da rua em frente e das coisas costumeiras que suas retinas guardavam como tesouros: uma borboleta, um bem-te-vi, um burrinho amarrado a uma árvore. Os dias escorriam tão lentos, quanto o rosário que eram obrigadas a rezar todas as noites.

Um acontecimento inesperado veio suspender a monotonia. O pai permitiu que uma figura masculina penetrasse no mundo feminino. Apenas no quintal e jardim. O pomar precisava de braços fortes.Olhos desassossegados passaram a perscrutar os recantos mais distantes, a demarcar espaços à procura de postos de observação. Uma onda de calor propagou-se pela propriedade, provocando pequenos incêndios.No quarto fechado e silencioso, as madrugadas alongavam-se e as moças se revolviam insones até os primeiros clarões do dia.

Clara foi a primeira a padecer: inesperadamente escureceu. Passos cuidadosos se multiplicaram e entrecortaram o silêncio. Banhos medicinais. Bacias e mais bacias. Cheiro de éter. Cochichos. Clara, antes tão clara, foi empretecendo e terminou negra como a escuridão.Não demorou muito e Margarida amarelou. Despetalou aos poucos, as pétalas foram caindo uma a uma. Desnudou-se. O vigário foi chamado e trouxe água benta, a benzedeira, um ramo de arruda e as mulheres da cidade, braçadas de margaridas. Nesse dia, o pai teve de abrir as portas de par em par. As flores se esparramaram pelas salas, despencaram pelas calçadas, amarelando toda a vizinhança.Numa noite de intenso calor, Magnólia, a mais gordinha de todas, começou a murchar. Os lençóis embebidos de suor eram substituídos por outros e mais outros. As empregadas, lançadeiras intermitentes, para lá e para cá. O quintal cheio de cordas, cobertas de panos brancos ao vento. A moça desmanchava-se em água, escorria pelo piso e ganhava as ruas. Pela manhã restava só um fio sobre a cama.Aurora, tão solar, anoiteceu repentinamente. Perdeu a alegria e a voz. Não mais saiu do quarto. O olhar perdido no nada. Sem palavras, os lábios foram afinando, afinando, se tornaram um traço fino e desapareceram de vez.Eugênia desesperou-se, correu pelo quintal, rasgou a roupa, arranhou-se nos cipós e, enlouquecida, explodiu em chamas.

O casarão antigo, o porão escuro, o grande quintal cheio de árvores. Uma paisagem perfeita, não fosse a ausência de sons. Não se ouviam vozes. Só o barulho do vento nas folhas e o gemido das dobradiças no vaivém de portas e janelas.

("Uma paisagem quase perfeita", do livro A arte de engolir palavras)

Uma viagem fantástica


Escrever é uma arte e, como toda arte, requer perícia. No caso da literatura, pode-se dizer que o texto é ‘tecido’ pela arte de engolir e ‘desengolir’ palavras, numa atitude consciente da criação. Lourdinha Leite Barbosa, em seu livro de contos “A arte de engolir palavras” já anuncia esse processo a partir do título da obra, que Vicência Jaguaribe bem marcou como uma reflexão metalingüística. O conto homônimo é uma metáfora desse exercício, sem dúvida.

Embora se saiba que a inventividade não decorra de técnicas, mas do poder de captar, da imaginação, da observação ou da memória, a matéria sensível que dá ‘vida’ aos enredos, percebe-se, nos contos de Lourdinha, o apuro formal de quem bem domina a técnica do conto. Sua frase enxuta e seus enredos concisos mostram um trabalho de linguagem cuidadoso, elaborado com precisão e consciência. A teoria literária, como as tantas teorias do texto, se diluem no uso de recursos como a intertextualidade, o efeito fantástico e a ambigüidade. Seus textos não subestimam o leitor, ao contrário, convidam-no ao mergulho, à prospecção, à construção da lógica (ou da subversão dela) que subjaz nas entrelinhas.

O Fantástico, gênero que se estabelece a partir de um acontecimento não explicável pelas leis da razão, está presente em pelo menos seis das narrativas do livro. Destaca-se a sutileza com que a autora consegue construir o clima extranatural, de forma tão harmoniosa, ao trabalhar um tema tradicional como ‘o duplo’, no conto “A viagem” (p.32).

É este um dos mais antigos temas explorados pela literatura, tendo aparecido mais notoriamente no século XIX, quando vieram a lume as produções de E. T. A. Hoffmann, Edgar Allan Poe, Guy de Maupassant e Dostoievski. A sua origem, no entanto, remonta à Antigüidade Clássica, pois, como afirma Clément Rosset (1976:61), “os personagens de Sósia ou de irmão-gêmeo ocupam um lugar no teatro antigo, como no Anfitrião ou em Os Menecmas de Plauto”. O tema ultrapassa a expressão literária, estendendo-se, ainda, à pintura e à música.

O desdobramento do eu que, na realidade, vem possibilitar o encontro desse eu consigo mesmo, resulta, geralmente, de um conflito existencial que leva o sujeito a buscar a sua verdadeira essência. Clément Rosset (1976) afirma que a restituição desse eu, ou seja, essa “reconciliação de si consigo mesmo” (p. 77), ansiada pelo indivíduo em conflito, só é possível através da aniquilação do duplo. Já na literatura romântica, conforme assinala o filósofo, ocorre o contrário, pois “a perda do duplo, do reflexo, da sombra não é [...] libertação, mas efeito maléfico” (p. 78). A destruição do duplo implica a destruição do eu. No seu ponto de vista, inclusive, o duplo não passa de uma ilusão: “Quem repete não diz nada, quer dizer, não é nem capaz de repetir-se. O original deve dispensar qualquer imagem: se não me encontro em mim mesmo, reencontrar-me-ei ainda bem menos no meu eco. É preciso então que eu seja suficiente, por menor que seja ou pareça na realidade: porque a escolha se limita ao único, que é muito pouco, e ao seu duplo que não é nada (ROSSET, 1976: 83-4).

A narrativa do conto “A viagem”, de Lourdinha, não dá nenhuma pista sobre a moça, que não tem nome nem idade ou qualquer característica que faça o leitor criar uma imagem. Sua aparição dá-se já quase como um ser etéreo, que vai ao encontro do seu destino. Seu? “Tinha encontrado o misterioso bilhete, com a hora da viagem, o número do guichê e o código, sobre a mesinha de cabeceira do namorado e resolvera descobrir aonde ele ia e com quem”. Logo ela se apercebe que “varou a noite sem saber o motivo e o destino da viagem” e questiona se realmente estaria ali por acaso.

Sem entender , após dar a senha ao ‘homem alto e magro’ do guichê, recebe o tíquete e um livro de capa azul sem qualquer inscrição. Também sem autor e com um título em língua desconhecida, o livro traz textos em língua inteligível e desenhos estranhos: “um ovo, contendo uma figura metade macho, metade fêmea, sobre um dragão alado; um pássaro de asas abertas, cuja sombra era uma figura humana; uma cruz, cujos braços terminavam em triângulos, e embaixo de cada braço, um círculo com um quadrado dentro. Uma seta feita à mão, apontava para um deles: um círculo sextavado, com vários círculos concêntricos, interrompidos em certos pontos”. O mistério se ‘concretiza’ e o significado da senha – Hâdi – bem como do símbolo indicado pela seta, causam certa inquietação no leitor. A personagem, entretanto, limita-se a tentar decifrar o símbolo e a incomodar-se com o vazio na estação, no restaurante e no próprio trem. Só no vagão indicado no tíquete há pessoas.

Assustada com a ausência de estrutura para a viagem – não há sequer camareiro ou funcionário no trem- ela, após percorrer todos os vagões e perceber que não há ninguém, retorna ao seu e se dirige às pessoas, demonstrando seu nervosismo na tentativa de compreender a situação. Os passageiros, na tranquilidade dos que já tudo entenderam, respondem-na com certo desvelo, como a se darem conta de que ela precisa se acalmar: “Os dois velhinhos pareciam não ter entendido. A senhora de meia-idade procurou acalmá-la”; “contemporizou o homem de olhos azuis”; “Todos se entreolharam”; “A jovem de cinza acompanhou-a”. Solenes como os mortos, os passageiros do trem deslizam sobre os trilhos, em velocidade lenta e, sem saberem aonde ou a que vão, chegam a uma estação iluminada, sem indicações; ‘um prédio deserto de paredes completamente brancas e nuas’. A reação da moça, a única a, aparentemente, não saber o que se passa, é de ‘calafrio’, solidão, medo.

O Fantástico vai-se construindo no insólito dos acontecimentos, na ausência de explicações para a situação incomum, na inquietude do comportamento da personagem – assustada, nervosa -, no espaço sem identificação, híbrido como a morada dos mortos... A senha ‘Hâdi’ indicaria uma passagem para a morada de Hades? Perdida no labirinto da passagem entre a vida e a morte, ela decifrou o símbolo e lembrou dos jogos da palavra cruzada, de desenho idêntico... mas sua saída foi o sono, o entorpecimento da consciência até a chegada ao ‘fim da linha’. Não se sabe se esse sono se dá antes ou após a descida na estação iluminada. Não há notações temporais contínuas.

O leitor atento não hesita, sabe que o percurso no trem foi a preparação para a irrupção do insólito; de dentro do trem, ela enxerga seu próprio vulto a esperá-la na estação: “Aos poucos, foi divisando o prédio da estação e um vulto solitário de pé na plataforma. Ao acercar-se, faltou-lhe o ar e todo o seu corpo ficou paralisado pelo pavor: a mulher que da plataforma a fitava era ela mesma”. Embora a personagem esboce reação ante o sobrenatural, o Fantástico se estabelece de forma bastante sutil – moderna, pode-se dizer -, pois a morte não é tratada de forma maléfica, tampouco o vulto que aparece traz contornos de um fantasma; não na acepção do reaparecimento de uma alma penada, que volta à vida para causar assombro, mas da aparição de uma mulher que não sabe sua condição e mantém o seu antigo aspecto, longe das formas indefinidas e evanescentes (HOLANDA, 1986: 757), próprias do fantasma tradicional.

Como já se falou, procurando concretizar essa ilusão __ o duplo __, a literatura fantástica explora tanto a restituição quanto à aniquilação do eu. A linha mais tradicional segue a trilha da literatura romântica que, como citou Rosset, percebe na destruição do duplo a aniquilação do próprio eu. Já a moderna, concebe esse encontro como a restituição desse eu, ou seja, essa “reconciliação de si consigo mesmo”. Qual seria o caso do conto “A viagem? Ora, é exatamente a ambigüidade o princípio constitutivo do Fantástico nesse conto: estaria a personagem apenas sonhando e acordara? O conto, possivelmente carregado da preocupação existencial da autora, teria colocado na moça as inquietações humanas dos que se encontram pedidos de si e buscam reencontrar-se? Ou estaria ela mesmo morta, fazendo a viagem simbólica à ‘morada dos mortos’? O discurso não permite respostas e é, certamente, nessa incerteza que o Fantástico se consolida.

BIBLIOGRAFIA:
FERREIRA, Aurélio B. de H. Novo dicionário da língua portuguesa. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
FURTADO, Filipe, A construção do fantástico na narrativa. Lisboa: Livros Horizonte, 1980
JAGUARIBE, Vicência Mª Freitas. Sobre a arte de engolir palavras e suas outras artes. In: LEITE BARBOSA, Lourdinha. A arte de engolir palavras. Bagaço, Fortaleza, 2002 pp.77-95
LEITE BARBOSA, Lourdinha. A arte de engolir palavras. Bagaço, Fortaleza, 2002
ROSSET, Clément. O real e seu duplo., 1976TODOROV, Tzvetan . Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 1975.

Aíla Sampaio

Quadros em movimento


A mala voltara quase vazia como fora; sua mente, no entanto, estava repleta. Visitara museus, bibliotecas e livrarias.O pequeno quadro, presente de um amigo, foi acomodado entre os inúmeros que pendiam assimetricamente da parede da sala.

Encontrar um espaço ali era quase impossível. Afastou-se para ver o resultado e teve a impressão de que algo se movera. Aproximou-se com medo de que fosse um inseto. Não viu nada. Os quadros mais antigos se alargaram e forçaram os mais recentes a se comprimirem. Nesse empurra-empurra alguns se inclinaram, Ingrid percebeu o leve rumor e recolocou-os em seus lugares. As cinco mulheres de branco que, no quadro de moldura negra, se dirigiam às suas casinhas assustaram-se com o movimento e apressaram o passo. A luz atravessou a janela e pousou sobre o quadro em que uma moça caminhava por uma rua ensolarada. Ela estancou o passo, largou a cesta que mantinha encostada ao quadril e rodopiou sobre o calçamento irregular.Ingrid pôs um CD de Chico Buarque e iniciou uns passos de dança. As pessoas do quadro em tons vermelho e negro, que observavam uma festa popular, voltaram-se e a aplaudiram com entusiasmo. Sem perceber o que se passava na parede de sua casa. Ingrid apanhou as ilustrações que trouxera do Museu Dorsay e estendeu-se no sofá abaixo do quadro em que um pintor fazia seu auto-retrato. O pintor abandonou palhetas e tintas e passou a observar, junto com ela, as reproduções. Um forte sopro de vento alçou as cortinas e avivou as figuras dos quadros. As três mulheres que conversavam, ao lado de grandes cestos cheios de conchas, despiram suas longas saias, retiraram os panos da cabeça e correram, numa nudez branca, em direção ao mar. Ao mesmo tempo, as pessoas do quadro abaixo, que caminhavam com tranqüilidade ao lado do Sena, puseram-se a correr confusas em todas as direções. Já não se obedecia aos limites impostos pelas molduras. Aprisionadas no tempo, não sabiam para onde ir ou o que fazer. Atônitas descobriam um novo mundo. Uma mulher que parecia ter saído de uma revista de modas da década de cinqüenta falou em francês para um enorme galo que se mantinha parado: Por que você não se move? — O galo mexeu a cabeça e respondeu em português: Estou nesta posição desde 1972, não consigo mexer as pernas. De repente, formou-se um grande círculo e reclamações de toda ordem foram ouvidas em diferentes línguas. Todos se entendiam: “Fui paralisada enquanto caminhava para casa”; “Estou há anos sem tomar banho”, “Não sei o que foi feito da minha família”, “Nem pudemos entrar em casa, depois da festa de Iemanjá”; “Quantos anos se passaram? Estou jovem e minha filha deve estar velha”; “Por que fomos aprisionados?”; “Eu nunca terminei meu auto-retrato. Temos que fazer alguma coisa”.Durante a confusão uma moldura caiu. Ingrid levantou-se atordoada. Estava mesmo precisando descansar, suas pernas pareciam não lhe pertencer. Apanhou o quadro e, ao colocá-lo de volta, parou perplexa: a tela não tinha qualquer vestígio de tinta.

(Conto publicado na Revista Caos portátil - Lourdinha Leite Barbosa)

A arte de engolir palavras





Com o livro A arte de engolir palavras, constituído de 20 peças, Lourdinha Leite Barbosa estreou no gênero conto. No ensaio intitulado "Sobre A arte de engolir palavras e outras artes", aposto ao volume como posfácio, a professora Vicência Maria Freitas Jaguaribe faz minuciosa análise da obra, que poderia deixar os críticos sem mais nada a dizer. Assim, vê na coletânea cinco narrativas fantásticas, sendo as demais "de natureza mimética ou realista, no sentido mais geral desse termo".

Algumas histórias da coleção tratam de pequenos dramas pessoais, quase sempre femininos ou na visão feminina (personagem-narradora), em reduzido número de parágrafos curtos, fundados no recurso da narração, com breves diálogos. Como também observa Vicência Jaguaribe, "o narrador de terceira pessoa desse conto, como o de muitos outros, parece um mero recurso da autora para emprestar à narrativa uma ilusão de objetividade, pois quem na realidade acaba filtrando os fatos para o leitor é a própria protagonista, por meio da técnica do discurso indireto livre, que soa quase como um monólogo".

A maioria das peças do volume foi construída como narrações em terceira pessoa. Personagens-narradores encontram-se em "Nó cego", "Poça dágua", "Flores de papel", "Medo" e "Encantamento". Na primeira, uma das mais longas do livro, uma mulher conta a sua desilusão amorosa: flagra o marido com outro homem, em "beijo profundo, prolongado", sem deixar claro ao leitor a identidade do outro, talvez para dar ao conto um ar de mistério. Na segunda narrativa, de feitio fantástico, outra mulher narra o próprio desespero, como num pesadelo. O leitor, entretanto, só percebe o perfil feminino no desfecho, quando a personagem observa: "Sei que estou ferida, mas não sinto dor". Na terceira história desse tipo, a protagonista Zefa, a moça doida, desenvolve a narração no presente, em monólogo interior. "Medo" tem como narrador um homem, embora também pudesse ser mulher. Nas primeiras linhas ele se diz desesperado. No último dos contos em primeira pessoa um menino apaixonado pela bailarina do circo conta a história.

Raríssimas vezes a contista se vale do flagrante, dando o narrador pequenos saltos no tempo, a cada parágrafo. Em "Bumerangue" a protagonista, sem nome explícito, chega a uma fazenda. Em flash-back a narração se volta para a partida da personagem ("Partira escorraçada e humilhada"). Seguem-se breves narrações-descrições do ambiente ("cozinha larga e clara"; "colheita do feijão"; "as chuvas trouxeram à fazenda"). Após meia dúzia de frases, apresenta o segundo ser fictício, "um rapazola franzino, de olhar manso e fala pouca". E novo conflito se instaura, até o desfecho, quando a mulher, "resignada, partiu em busca de um novo refúgio, como a fechar uma porta sem fim". Dessa forma, Lourdinha Leite Barbosa consegue pintar a protagonista por dentro, bem como o ambiente onde ela vive e o tempo dos seus embates interiores, tudo em pouco mais de 30 linhas. Em "A Valsa Proibida" esta técnica se repete, com algumas variações: os flashes-backs são mais longos, o tempo narrado se encurta, a personagem tem nome explícito, Mirta, e o desfecho parece feliz.

Às vezes o tempo se dilata, enquanto o espaço da ação se restringe. Em "Vida em três tempos", como o próprio título indica, Marília se revê em três momentos de sua vida. Pensa, rememora. O conflito é interior; a protagonista se acha em casa, a olhar para "o porta-retrato em cima da mesinha de cabeceira". Ao final, "enrodilhou-se na velha poltrona", a dizer ao leitor que dali não saiu, ao longo da narração. Outras vezes o espaço se amplia. Em "Aqui, ali, acolá", como o título mostra, a ação se dá em diversos lugares: no campo (árvores, pedras, estrada); na cidade ("avenida larga e movimentada"), uma pousada, um hospital. Em "Uma paisagem quase perfeita" as personagens habitam um casarão antigo, com seu porão escuro e o grande quintal cheio de árvores: uma paisagem quase perfeita. Como nos contos de fadas, as moças sonham e sofrem de solidão. "Os dias escorriam tão lentos quanto o rosário que eram obrigadas a rezar todas as noites". E ocorre a transgressão no tempo e no espaço: a monotonia é suspensa por um acontecimento inesperado - a chegada de um jardineiro. A figura masculina penetra no mundo feminino. "Apenas no quintal e jardim". Daí por diante tudo se transforma no casarão e nas donzelas, que vão, uma a uma, murchando, amarelando, morrendo.

Há também histórias folclóricas, que não deslustram o conjunto, como "Flores de papel", em linguagem regional: cabaça, tomar tenência, indagorinha, mangar de mim, fazer mangoça, pataca. A intertextualização com as cantigas de roda dá à obra um quê de arte literária. Essa localização da trama no espaço rural ou da cidade pequena ocorre em diversas peças do volume. Em "Penitente" o protagonista anda por ruas desertas, pelo átrio da matriz, vai ao açude, embrenha-se no mato, banha-se na cacimba. Não se tratam, porém, de narrativas regionalistas, quer pela manipulação da linguagem, quer pela estruturação do enredo. A contista não cansa o leitor com diálogos intermináveis de matutos e muito menos com descrições enfadonhas de paisagens e topografias.

Os personagens de Lourdinha Leite Barbosa são apenas os que participam diretamente da trama: o protagonista e o antagonista. Raras vezes aparece terceiro ou quarto ser fictício. Isso faz com que o conto seja curto e não se desdobre em mais de uma história ou apresente um enredo dentro de outro. Mesmo no clássico triângulo amoroso, o terceiro personagem não passa de sutil lembrança. Em "Bumerangue" a protagonista faz breve referência ao ex-marido, sem sequer mencionar o nome: "Até ameaça de morte ele fizera". Apenas "ele" e nada mais. Em "A Decisão", Hortência lembra do ex-marido em uma frase capital: "ele confessou que tinha outra". Essa outra não chega a ser personagem. Em "A Valsa Proibida" pode-se ver uma só ser fictício, Mirta, "mulher idosa, vestisda de princesa". Seu pai e sua mãe são apenas referidos, em fato remoto de sua vida. Os amigos são como bibelôs, objetos: "Mirta recebia os amigos com um largo sorriso". São apenas "homens e mulheres, em traje de festa". Com tanta economia de personagens, é natural que os conflitos não aflorem. Pois a trama é quase sempre pessoal, individual, interior. O enredo por pouco não é abolido nas narrativas de Lourdinha. Veja-se "Vida em três tempos", que pode ser o exemplo mais claro disso: a protagonista Marília vive com Dirceu, que, no entanto, não passa de personagem morto, passado. "Já não eram um. Calada. Sem nada a dizer. Fingindo não ver, não ouvir. Brigar para quê?" Ou seja, o outro, Dirceu, não passava de um ser apático, sem reação, incapaz de participar de um conflito.

Vistos os contos em alguns dos fundamentos do gênero, resta-nos avaliar a linguagem da contista. Em primeiro lugar, a concisão e a precisão, presentes na maioria das histórias. Em conseqüência, a riqueza de sugestões e a economia dos detalhes, tão bem percebidas por Vicência Jaguaribe. Ou seja, Lourdinha Leite Barbosa consegue realizar a arte de engolir palavras em sua primeira coleção de peças ficcionais, enquanto muitos escritores passam a vida expelindo palavras e terminam sufocados pela própria verborragia.

Nilto Maciel. 20.03.2005