segunda-feira, 20 de abril de 2009

Dos valores do Inimigo e de outros valores presentes na narrativa de Pedro Salgueiro.




Lourdinha Leite Barbosa*
* Mestra em Literatura Brasileira pela UFC e escritora, com várias publicações. Professora da UECE

Resumo

O presente trabalho realiza uma leitura do livro Dos Valores do Inimigo (2005), do contista cearense Pedro Salgueiro, buscando compreender a divisão da obra, analisar as lacunas, as obscuridades e o silêncio, ou seja, as características dos contos de mistério que os diferenciam dos contos fantásticos, examinar as recorrências de motivos e elementos narrativos responsáveis pela intratextualidade um dos aspectos relevantes da obra do autor.

Palavras-chave: Conto contemporâneo. Conto realista. Conto Fantástico. Conto de Mistério.
Abstract This study performs a reading of the book values of Enemy (2005), the contista cearense Peter Osborne, trying to understand the division of work, analyze gaps, the ambiguities and silence, ie the characteristics of tales of mystery that differentiate the fantastic stories, examining the recurrence of reasons and factors responsible for intratextualidade a narrative of the relevant aspects of the work of the author. Keywords: Tale contemporary. Tale realistic. Fantastic Tale. Tale of Mystery.

Introdução

Alguns contos de Pedro Salgueiro mantêm um tênue equilíbrio entre o fantástico e o mistério e, por isso, têm sido motivo de inúmeras discussões. A despeito de sua aparente simplicidade, Machado de Assis, em 1873, já reputava ser o conto um gênero bastante difícil.

Distinguir as várias formas de narrativa tem confundido estudiosos da literatura, que, com freqüência, deparam-se com obras de ficção que não se enquadram nos cânones tradicionais. Macunaíma é exemplo dessa ultrapassagem de fronteiras, o próprio Mário de Andrade, por considerar inapropriado chamá-lo de romance, denominou-o de rapsódia. Num dos livros já antológicos de ensaios sobre o conto - What is the short story?, os organizadores E. Current Garcia e W. R. Patrick (1961) selecionaram textos gerais da bibliografia teórica sobre o conto, cujos autores se dividem entre os que propõem definições e a procura da forma e os que manifestam revolta contra regras e definições prescritivas. Nádia Gotlib, em Teoria do Conto (1985), afirma que a força da teoria pode aniquilar a própria vida do conto.

O conto contemporâneo é produto da complexidade dos novos tempos. Antes havia um modo de narrar que considerava o mundo como um todo, mundo que o escritor conhecia, compreendia e dominava com o seu saber onisciente; depois, com a transformação que a nossa civilização vem sofrendo desde o início do século XX, o caráter de unidade da vida e conseqüentemente da obra vai desaparecendo e acentuando-se o caráter de fragmentação. Como afirma Bosi: “posto entre as exigências da narração realista, os apelos da fantasia e a sedução do jogo verbal, ele (o conto) tem assumido formas de surpreendente variedade”. Cabe aos teóricos rever continuamente os conceitos e acrescentar-lhes as inovações postas em circulação.

1 Dos valores do inimigo: divisão da obra

Dos Valores do Inimigo é uma seleção de contos curtos, alguns já publicados, dividida em: “Acontecimentos”, “Dos Valores do Inimigo” e “Soluço Antigo”. Nas três divisões, há contos de raízes realistas – realismo no sentido de imitação ou adesão ao real, contos de mistério e contos fantásticos – na perspectiva moderna de um fenômeno que foge às leis da razão, mas já não causa tanto impacto sobre as personagens, que também não aparecem revestidas de um aspecto sinistro.

Procuramos entender o sentido de unidade da obra a partir do título de cada uma das divisões. A primeira divisão, denominada “Acontecimentos”, indicia uma maior preocupação com o relato em si, que pode ser extraordinário, como nos contos de Edgard Allan Poe, em que o acontecimento é intenso, ou um fato sem nada de excepcional, produto de uma intensa elaboração, próprio dos contos de Maupassant. Já a segunda divisão, “Dos Valores do Inimigo”, que dá título à obra, parece procurar um equilíbrio entre o acontecimento e as personagens e, por fim, a terceira, “Soluço Antigo”, em que o autor parece seguir o exemplo de Tchekhov, ou seja, buscar libertar o conto de um de seus preceitos fundamentais: o acontecimento.
2 Das lacunas, das obscuridades e do silêncio.

Alguns contos de Salgueiro que, à primeira vista, julgamos fantásticos, se examinados com mais vagar, percebemos que, na verdade, são narrativas misteriosas, uma vez que lhes falta o fenômeno insólito, ou seja, um acontecimento que transgride as leis da razão, condição indispensável ao gênero fantástico.

Para criar a atmosfera de mistério, de sombra e de ambigüidade, Salgueiro explora com mestria um recurso bastante utilizado pelo romance policial: a insuficiência de informação. Oscar Tacca, em As Vozes do Romance, afirma que grandes escritores se valeram desse desajuste de informação, dentre eles Stendal, Balzac, Robbe-Grillet e Gide. Acrescenta ainda que boa parte do mistério, do clima alucinado e da obscuridade da obra de Faulkner tem origem nesse constante recusar-se a saber, de seus personagens, aquilo que provavelmente nem eles mesmos sabem.
Em “Vislumbre”, narrativa que abre a coletânea, um narrador de primeira pessoa mostra-se abalado emocionalmente com o recebimento de cartas misteriosas. O texto inicia-se no tempo presente, com a frase - “O que não foi, é”, ouvida pelo personagem, cujo sentido nem ele nem o leitor compreendem. A partir dessa frase, que se repete em sua cabeça, o personagem-narrador vai revelando, através da técnica do flash-back, alguns acontecimentos do dia anterior e confundindo-os com fatos de um passado mais remoto (tempo de criança). Informações essenciais para a compreensão da fábula são, intencionalmente, escamoteadas a fim de criar uma atmosfera de mistério e incitar o interesse do leitor, que chega ao fim do relato cheio de interrogações e sem nenhuma resposta concreta. No último parágrafo, o personagem entende tudo, sabe que foi enganado e que não há mais retorno; ao passo que a nós leitores só restam conjecturas. O narrador, o autor da carta e toda a cidade parecem saber o que ocorreu, mas o leitor jamais saberá.

“A Fotografia” segue a mesma linha de “Vislumbre”. Novamente um narrador de primeira pessoa fala de Laura, uma mulher envolta num mistério tão grande, que ele próprio está quase convencido de que ela não existira, talvez fosse produto de sua imaginação. O acontecimento, em si, é aparentemente insignificante: Laura conseguira, com muito esforço, permissão da família para viajar com o noivo e, depois de três meses, volta sozinha. Sem proferir uma palavra, deixa-se morrer aos poucos com o olhar perdido no infinito. Todo o registro dessa vida está sintetizado em quatro linhas, o mais são tentativas inúteis, feitas pelo narrador, para saber o que acontecera naquela viagem. Todos silenciavam como se o casal não tivesse existido. A única pista é uma fotografia do noivo, tirada durante a viagem, que o narrador vê de relance, antes que a mãe dela a tome bruscamente de suas mãos, conforme a passagem abaixo:

O que vi na foto não lembro, devo ter bloqueado a memória devido ao susto, porém, se não recordo... sinto no mais íntimo do meu coração... (p. 15)

A fala do narrador é cortada por reticências, que sugerem uma amnésia ou a perda da lucidez já posta em questão por ele mesmo anteriormente. Estaria ele envolvido com o caso?
Nesse conto, as informações são negadas também ao narrador, que não pode, portanto repassá-las ao leitor. A lógica da narrativa exige, para criar essa atmosfera ambígua e imprecisa, um narrador de primeira pessoa, cuja onisciência restringe-se a ele mesmo. Assim, narrador e leitor têm o mesmo grau de conhecimento dos fatos, ou seja, nenhum:

Até os desafetos da família silenciavam, como se tudo que passou, como se aquelas vidas nunca tivessem existido... e eu me senti um louco tentando com que os outros me explicassem algo que só existia em mim. (p.15)

A mesma técnica de construção lacunar, com algumas variações, vai se repetir em “Destino”. Desta feita um narrador de terceira pessoa inicia o texto fazendo comentários a respeito da narrativa e previsões sobre o acontecimento que será narrado:

Capricho tolo este de querer que as histórias tenham sempre uma explicação, um desfecho razoável. Inutilmente buscamos entender tudo – como se qualquer acontecimento tivesse conclusão lógica: mas a vida nos prega peças a todo instante. (p.18)

O texto estabelece um diálogo com o conto anterior “Fotografia”, através da recorrência temática e de motivos narrativos. Ambas as personagens são mulheres que tentam realizar-se através do amor e terminam frustradas e sem voz, uma vez que provêm de família patriarcal em que, por direito, a voz pertence ao pai.

Os fatos se organizam num enredo de estrutura simples obedecendo à ordem lógica de causa e conseqüência. Do mesmo modo que ocorreu com a protagonista de “Fotografia”, a personagem viaja com o amado, volta sozinha depois de dois dias, enclausura-se em um quarto nos fundos da casa e cala-se para sempre. De acordo com o narrador, o motivo da ruptura jamais será revelado. As lacunas existentes neste conto são menores e dizem respeito somente aos dois dias de duração do casamento, cujo fracasso o narrador já havia antecipado para o leitor (não só pela maneira como se conheceram, por meio de um anúncio em revista de novela, mas também por suas vivências opostas: ele, no mar a maior parte dos dias e ela, numa cidadezinha perdida no interior).

Olhos de Cão e Rasga-Mortalha são contos que seguem a mesma técnica narrativa das lacunas e dos hiatos, em ambos um narrador externo sabe menos que as personagens. Em Olhos de Cão, o acontecimento se dilui e o espaço cede lugar a uma atmosfera onírica e alucinante. Composto de um só parágrafo compacto, o conto se inicia com a descrição de uma cena captada por uma câmera pequena e escura (o narrador parece encontrar-se num plano superior ou por trás da câmera) que, descontrolada, rasteja pelas coxias, sobe muros, telhados e focaliza pessoas que saem assustadas de becos escuros. Pode-se dizer que duas cenas compõem a narrativa: uma noturna, em que pessoas sorrateiras tiram velhos papéis dos bolsos e os pregam em paredes de casarões em ruínas e outra diurna (“...afugentadas pelos primeiros raios de um sol laranja e orvalhado”), na qual uma pequena multidão se forma em torno dos papéis disputando-os a cotoveladas (“e as pessoas voltavam a ter sombras”). Devido ao ambiente, parece tratar-se de ação costumeira, realizada por estudantes na época da ditadura, pois, para dar uma maior ilusão de realidade, o autor situa o acontecimento num espaço real: as ruas do Benfica, lugar freqüentado pelo cineasta (já falecido) Eusélio de Oliveira a quem o conto é oferecido.
O leitor de Rasga-Mortalha percebe, logo no início do conto, que tempo, personagens e objetos não se encaixam:

Sempre no início da madrugada, se observava o estacionar de carros: seus passageiros, impecavelmente vestidos, traziam consigo estranhos objetos. (p. 25)
E o estranhamento cresce, à proporção que ele toma conhecimento dos objetos: um antigo arado enferrujado e sujo de barro, um pássaro enorme cujos pés estão metidos num saco de plástico e cujo bico está amarrado com tiras de pano. A casa também lembra os cenários das histórias fantásticas de Théophile Gautier, nas quais o antigo e decrépito propiciam a ocorrência do inexplicável:

A casa desabitada fazia muitos anos preservava em seus jardins galhos secos e retorcidos sobre os muros. Na cumeeira, um ninho de rasga mortalha, de quando em vez um ruflar de asas saindo pela clarabóia. (25)

Para completar o clima de mistério, existe uma figura sinistra: um homem alto, de cabelos grisalhos, barba rala e olhar profético. Está tudo preparado, mas falta o fenômeno insólito e a narrativa termina sem que o narrador descubra o que acontece dentro da casa.
Por tudo que foi exposto, esses contos podem ser considerados de mistério, e não fantásticos.
3 Dos contos fantásticos

“Invasão” é o primeiro conto fantástico da primeira parte e, como a maioria dos contos de mistério e fantásticos do livro, tem um narrador de primeira pessoa, que, segundo Todorov, é o mais indicado para a construção do gênero em análise.

Tendo como espaço uma cidade grande, com ruas iluminadas e altos edifícios, o ambiente não sugere qualquer acontecimento sinistro, embora seja madrugada, por isso o personagem narrador caminha tranqüilamente, pensando nas coisas que, de tão conhecidas, não são realmente notadas. Tomado por esses pensamentos ele pára em frente a seu edifício e observa-o demoradamente. A janela de seu apartamento está aberta e, de repente, ele vê passar dentro de sua sala de visitas uma silhueta magra. Fica intrigado com aquela presença estranha e senta-se no meio fio para pensar. Nisso percebe que as coisas familiares ao redor estão diferentes: a cor do prédio em frente não é a mesma; na esquina, ao invés da farmácia, há uma floricultura. Essas mudanças o deixam inseguro e perplexo.

O conto nos leva a refletir sobre a incerteza do real, sobre a veracidade do que vemos. Ou como afirma Barine (Arvède Barine – Poetes et névrosés, Paris: Hachette, 1908) “Quando a ciência nos ensina que uma ligeira alteração de nossa retina faria o mundo para sempre descolorido, ela sugere a todos o pensamento de que o mundo real poderia bem não ser senão uma aparência, como já os filósofos o sabiam”.

“A Passagem do Dragão”, baseado em acontecimento real - a comprovação da Teoria da Relatividade Geral, de Albert Einstein, por pouco não se tornou apenas um exemplo do fantástico-estranho. Logo no primeiro parágrafo, o narrador introduz o fenômeno insólito: o horror vivido pelos habitantes de um povoado, quando, em plena tarde, o sol tornou-se pálido e desapareceu de vez e, durante a escuridão, ouviu-se um forte bater de asas atravessando o vilarejo. Domina todo o texto um sentimento de estranheza, principalmente pela presença de três grupos de forasteiros, que chegaram ao lugar, uma semana antes do acontecimento, trazendo enormes caixas, das quais foram retiradas estranhas máquinas que apontavam para o céu.

O conto termina com os estrangeiros comemorando e tentando explicar ao povo o acontecido. Essa explicação do fato insólito caracteriza o estranho, mas a incerteza é introduzida novamente pelo comentário do narrador: “... porém não souberam explicar de onde surgiu e para onde foi o imenso pássaro que sobrevoou a vila na escuridão”.

Como o discurso pode desvanecer o fantástico a qualquer momento, Salgueiro pôs em risco o gênero, ao colocar a nota de roda pé explicando a origem do conto.

Brincar com Armas, narrativa que dá título a um outro livro do autor, também é um fantástico atenuado, quase um estranho, porque o narrador, após o fim da narrativa, acrescenta um P.S. explicando por que a arma estava carregada. Um leitor menos atento, não leva em conta a retificação, entre parênteses, de que o morto levara dois tiros no pescoço, embora a arma só houvesse disparado uma única vez.

“A festa” é a variação de uma história bastante conhecida: o narrador usa a primeira pessoa do plural, para contar como ele e sua companheira, durante uma viagem, tiveram que permanecer em uma localidade durante o réveillon e, no decorrer da festa, observaram algumas pessoas que, devido à aparência, destoava das demais com suas caras tristes e roupas fora de moda. Ao perceberem que eram observadas por eles, elas desapareceram. No dia seguinte, a dona da casa mostrou-lhes um velho álbum de fotografias de seus antepassados mortos e, para surpresa do casal, lá estavam todas aquelas pessoas estranhas, vestidas exatamente como estavam na festa.
Em Acontecimento, o narrador se encontra dentro de um ônibus, numa cidade movimentada e quente. É nesse espaço do cotidiano que vai emergir o sobrenatural. Ele levanta a cabeça para desatar o nó da gravata e, apesar de o sol forte ofuscar-lhe a visão, vê algo que o deixa tão aflito, que ele chega a perder a voz: “Um nó na garganta me impediu de gritar”. A personagem reage, tenta se comunicar com os vizinhos que se mantêm indiferentes. Utilizando o referido recurso da insuficiência de informação, o narrador não confessa o que viu, como se tivesse medo de nomear o extranatural. Diante da indiferença dos demais, ele hesita, já não tem certeza do que viu: “... e agora eu duvidava de tudo: do ônibus que parecia irreal, das pessoas que deviam ter saído de um sonho, desse calor infernal e daquele prenúncio de tudo o que estava para acontecer”. A personagem tenta fugir através do sono, mas quando desperta vê que nada mudou: a senhora gorda está se desmanchando, outros passageiros tornando-se avermelhados e ele vê subir de seus próprios ombros uma fumaça preta. Diante do impacto da estranha realidade, entrega-se às forças do sobrenatural. Como vemos, o narrador nega informações essenciais ao leitor, mas o acontecimento insólito deixa conseqüências e não é explicado.

4 Dos contos realistas

Dos dezessete contos da primeira divisão, apenas seis são realistas: “Procissão”, “No Carnaval”, “Esquecimento”, “Asas ao Vento”, “Todo Domingo às Três ou Balada de Consolo para Altino do Tojal” e “Pânico”. Também são realistas quase todos os contos da última divisão, “Soluço Antigo”, com exceção de “A rua do cemitério”, cujo humor dissipa o fantástico, pois a razão não permite que o gênero sobreviva, mas restam alguns resquícios de incerteza, como é o caso de “Jeremias ou o Vampiro da Rua das Flores”, em que o narrador, ao longo do conto, nega e confirma os fatos a respeito da personagem, deixando o leitor confuso; no final, entretanto, ele jura ter escutado choro de crianças ou latido de cães e a dúvida volta a rondar o leitor.

Nos contos realistas, os acontecimentos se organizam numa ordem lógica de causa e conseqüência, sem grandes rupturas, no máximo uma volta ao passado, e estão vazados, quase sempre, numa linguagem padrão ou coloquial, com alguns regionalismos: alpercata de rabicho, caviloso, lamparina, boquinha da noite, caneca de alumínio no beiço do pote.
Na última divisão, predominam os temas relacionados à velhice, como a solidão, a senilidade, a ambição familiar, o desamor, a morte. Vale ressaltar a capacidade de concisão conseguida pelo autor em “Soluço Antigo”, um conto brevíssimo que merece a nossa admiração. Nas três primeiras linhas, o narrador cria uma atmosfera fantástica que subverte o real; mas, nas duas seguintes, ao transcrever a fala da empregada, a natureza insólita do acontecimento se desfaz e o leitor é trazido de volta à realidade que o circunda.

5 Da recorrência de temas, motivos e elementos narrativos.

Pode-se afirmar que a intratextualidade é uma das características marcantes do texto de Salgueiro, seus contos mantêm uma constante relação dialógica entre si, seja em relação ao tema, seja em relação ao espaço ou acontecimento, ou mesmo à atitude de um personagem, o certo é que temos a impressão de já ter lido algumas passagens. Para exemplificar essa recorrência nos valeremos de contos da segunda e da terceira divisão da obra.

A maioria das narrativas tem como espaço cidades do interior, com sua igreja, sua estação, sua bandinha, sua gente simples que costuma sentar embaixo de árvores depois do almoço e na calçada à noitinha.


O conto fantástico “O Jogo de damas” apresenta um costume muito comum entre pessoas que vivem em pequenas cidades, que não oferecem muita diversão: jogar damas. Por ser um jogo popular que pode ser realizado em espaços abertos ou fechados e que não exige esforço físico, esse tipo de entretenimento, assim como o gamão, tem a preferência das pessoas mais idosas. Aliás, Salgueiro demonstra grande interesse por essa faixa etária que é o leitmotiv da terceira divisão do livro. Em várias passagens o jogo de damas está presente, exemplo disso são os contos “Ausência” (“O tabuleiro de damas continua empoeirado em cima da mesinha de cabeceira”) e “Em Família” (“Há anos deixou de jogar damas e já nem se lembrava mais das infindáveis partidas que ajudavam a vencer a quentura da tarde”).

O trem e a estação também são motivos recorrentes, talvez por ser o meio de transporte mais utilizado na época em que se passam as histórias. O certo é que há sempre um personagem descendo de um trem, como em “A Viagem” que se inicia com a seguinte frase: “Dom Eugênio descia do trem, pequena mala de viagem à mão e caminhava devagarinho pela rua empoeirada”. Em “Elefante” quem chega à cidadezinha é Gumercindo Freire: “Desde que avistou os primeiros telhados pela janela do trem, sentia-se perdido (...)”. Estes dois contos têm como tema o retorno à cidade natal e há trechos em que julgamos tratar-se da mesma cidade. “Madrugada” repete o motivo do trem (“Nesses dias eu escuto, com o ouvido colado à parede, o barulho do trem chegando ao povoado”) e descreve a mesma paisagem desolada já descrita em “A Viagem”, comparemos: “Aproximou-se da estação, o capim cobrindo tudo” (p.48) e “A estação vazia, o capim cobrindo a plataforma” (p.62).

Não se pode esquecer a predileção do autor por narrativas que tratam de crimes, principalmente crimes que têm por motivo a vingança: “O olhar”, “A longa espera”, “Elefante”, “Procissão”, “Pânico”.

Dois contos, “Pânico” e “A Rosa Encarnada”, mantêm um intenso diálogo entre si e levam o leitor, intrigado e seduzido, a uma releitura. Neles Salgueiro mostra, através de sua excelente técnica narrativa, como transformar um conto fantástico em um conto estranho.
Dos valores do inimigo oferece inúmeras possibilidades de leitura, esta é apenas uma delas, espera-se que outras venham contribuir para a compreensão da obra de Pedro Salgueiro.

Referências
BOSI, Alfredo. O conto brasileiro contemporâneo. São Paulo: Cultrix, 1989.
FURTADO, Filipe. A construção do fantástico na narrativa. Lisboa: Livros Horizonte, 1980.
GOTLIB, Nádia Battella. Teoria do conto. São Paulo: Ática, 1985.
LEITE BARBOSA, Maria de Lourdes D. A estranha máquina extraviada: uma escrita surpreendente. In: VestLetras: obras comentadas. Jornal O Povo, encarte. Fortaleza: Ed. Fundação Demócrito Rocha.
SALGUEIRO, Pedro. Dos Valores do Inimigo. Fortaleza: Edições da UFC, 2005.
SAMPAIO, Aíla. Tradição e Modernidade nos contos fantásticos de Lygia Fagundes Telles. Fortaleza: Dissertação de Mestrado da UFC, texto datilografado, 1996.
TACCA, Oscar. As vozes do romance. Coimbra: Livraria Almedina, 1983.
TODOROV, Tzvetan. Introdução à Literatura Fantástica. São Paulo: Perspectiva, 1992.
(Publicado da Revista de Humanidades da UNIFOR, 2008.2)

Um comentário:

lourdes maria disse...

Está de parabéns 😊 me ajudou muito 😍