quinta-feira, 23 de abril de 2009

Sobre A arte de engolir palavras e outras artes



Sobre A arte de engolir palavras e outras artes
(Vicência Maria Freitas Jaguaribe. Professora da Universidade Estadual do Ceará)

Engolir é correlato de alimentar e nutrir, e pressupõe desengolir, expelir. Sugere, portanto, uma reflexão metalingüística que contempla os dois momentos da produção artística: apropriar-se, pela percepção e pelo sentimento, do mundo e dos seres que o habitam e, depois, recriá-los pela palavra-arte. É um processo de conhecimento que, quando expelido no ato de contar histórias, lembra-nos de que as palavras “narrar”, “narrativa” e “narrador” têm relação etimológica com a raiz sânscrita gnâ, que significa “conhecer”. Foi, pois, feliz Lourdinha Leite Barbosa, quando resolveu dar a seu primeiro livro de contos o título “A arte de engolir palavras”, que também intitula uma de suas narrativas breves.
Essa pequena narrativa fantástica põe em cena uma personagem que, ao longo da vida, foi obrigada a engolir as palavras, ao invés de expressar com elas seus sentimentos. Certo dia, não suportando mais a situação, começou a expeli-las. A expulsão resultou benéfica e ele aprendeu a manejar as palavras: deglutia-as e regurgitava-as num ato de prazer. Não é necessária nenhuma ginástica mental para ver que a situação inusitada do conto ilustra o fazer literário e as dificuldades desse fazer: o engolir as palavras representa os processos de leitura e conhecimento do mundo, e a sua expulsão, a expressão artística. Observemos como termina a narrativa:

Degustava as palavras com prazer. Elas desciam suavemente e voltavam em contextos nunca dantes experimentados. Agora era a moça que gostava de ouvi-lo e ele, de ter as palavras à mão, examiná-las, sopesá-las, conhecer sua sonoridade e consistência. O tempo ensinou-lhe a manejá-las. Ainda que algumas, mais ariscas, não se deixassem dominar. Vez ou outra sofria um revés: por se sentirem muito desejadas, esquivavam-se, fugiam. Ele, então, era forçado a substituí-las, porém ficava sempre na boca uma ou outra letra e o gosto amargo do indizível.

“A arte de engolir palavras” integra, com mais cinco contos, (“Vozes que se revelam”, “Poça d’água”, “Cerco”, “A viagem”, “Uma paisagem quase perfeita”), a parte da coletânea que contempla a narrativa fantástica. Os outros catorze são de natureza mimética ou realista, no sentido mais geral desse termo.

As outras artes
Constata-se que, na coletânea A arte de engolir palavras, a preocupação da autora não é o real concreto, porém os conflitos existenciais decorrentes da inserção das personagens nesse real. Tanto é que o tempo e o espaço, na quase totalidade dos contos, são indeterminados, havendo somente sugestões ora de que o fato transcorre em uma cidade do interior, num tempo já passado, como em “Um caso delicado”, ora de que os eventos se passam nos tempos atuais e em uma cidade grande, como em “Vozes que se revelam”.
É principalmente a alma feminina que se encontra no centro das atenções da autora: é a grandeza trágica da condição de ser mulher. Temos quase sempre a mulher fraudada, pelo homem, pela família, pela vida, na sua capacidade de amar e confiar incondicionalmente; a mulher na busca de autoconhecer-se e na tentativa de autopreservar-se. Quase sempre uma mulher que luta e encontra uma saída e um novo motivo para continuar a viver. É justamente nas narrativas que expressam a condição feminina que a sensibilidade criadora de Lourdinha Leite Barbosa mais se patenteia. É essa, portanto, a primeira arte revelada pela autora – exprimir os dramas femininos com a propriedade de quem os captou pela sensibilidade.
A segunda arte revela-se no domínio da difícil técnica do conto, senão em todas as suas pequenas histórias, pelo menos em um bom número delas: a concisão e a precisão da linguagem, a economia dos detalhes, a capacidade da sugestão, virtudes de um bom contista, parecem-nos as marcas de “Bumerangue”, “Tudo em seu devido tempo”, “A decisão”, “Uma paisagem quase perfeita”, “Cerco”, “Retalhos” e “Vida em três tempos”.
A terceira arte está na feitura dos diálogos, em nossa opinião, um dos grandes entraves da narrativa literária. Construir um diálogo que pareça natural sem se tornar caricaturesco; que não sejam palavras vazias que nada dizem sobre a essência do fato narrado constitui-se uma das grandes armadilhas postas ao escritor, e que Lourdinha consegue driblar. Em três contos da coletânea – “Vozes que se revelam”, “A viagem” e “Nó Cego” –, a armadilha se apresentou: a autora tinha diante de si três boas oportunidades de escorregar no diálogo artificial ou desinteressante, mas o leitor é surpreendido por uma interlocução que flui naturalmente, num simulacro perfeito do real, como podemos constatar na passagem seguinte:
(...) A senhora de meia idade procurou acalmá-la:

- Nesta hora os passageiros são sempre raros.
- E o restaurante, por que não está funcionando?
O homem de olhos azuis respondeu:
- Talvez por causa do horário e do percurso, que é curto.
- Tão curto que nos deixam sem água?
- Podemos pedir ao camareiro.
- O senhor viu algum camareiro ou outro funcionário qualquer desde que saímos?

As artes da mimese
Embora os argumentos das vinte narrativas que compõem a obra variem – a autora vai da traição amorosa ao desejo incestuoso; do despertar do amor e da sensualidade à demência senil; da loucura aos conflitos provocados pelo amor homossexual –, por todas elas perpassa, como fio condutor e como veio subterrâneo, o sentimento da frustração. As personagens são homens e mulheres privados da satisfação de um desejo ou de uma necessidade, na maioria das vezes, não porque não tentaram, mas porque algo – um obstáculo externo ou interno – se interpôs em seu caminho.
Os desencontros amorosos são, sem dúvida, o grande motivo das frustrações dos seres ficcionais criados por Lourdinha Leite Barbosa. A mulher abandonada pelo marido é o argumento dos contos “Tudo em seu devido tempo” e “A decisão”. Nos primeiros tempos que se seguem à separação, ela se entrega à dor, pois que o abandono é pior que a morte: “Se fosse por morte, talvez sofrêssemos menos”. Fecha-se em seu mundo de sofrimento, ao qual nem mesmo as pessoas mais íntimas têm acesso; mas, de repente, não por um motivo qualquer, mas porque simplesmente acabou o tempo do sofrimento, pois para tudo há um tempo, ela emerge do abismo e toma a vida nas mãos.
Poderíamos começar a leitura de “Tudo em seu devido tempo” pelo capítulo 3 do Eclesiastes: Para tudo há um tempo, para cada coisa há um momento debaixo dos céus (...).
O narrador de terceira pessoa desse conto, como o de muitos outros, parece um mero recurso da autora para emprestar à narrativa uma ilusão de objetividade, pois quem na realidade acaba filtrando os fatos para o leitor é a própria protagonista, por meio da técnica do discurso indireto livre, que soa quase como um monólogo. O narrador não-personagem começa a relatar os fatos, mas, de repente, sem aviso prévio, transfere a palavra para a protagonista, uma vez que a dor não pode ser compartilhada e somente aquele que sofre é capaz de expressar o sofrimento:
Respondeu de chofre:

- Pouco importa. Está feito!
E fechou-se em silêncio. Que falassem o que quisessem, nada mudaria o seu penar. Nascemos sós e vivemos sós, essa é a grande verdade. Por mais que haja solidariedade, quem pode sentir a nossa dor? Aqueles que nos amam conhecem a impotência de não poder viver nosso sofrimento, que é só nosso.

À intensidade dos sentimentos da protagonista (intensidade que lhe foi conferida pela dor) opõe-se a superficialidade de sua irmã Marta, “com seus conselhos cristãos e sua felicidade permanente”. E a protagonista se pergunta: “Como ela conseguia estar sempre alegre?”.
Já dissemos no início dessas considerações que em seus melhores contos Lourdinha Leite Barbosa é econômica nos detalhes e eficiente na capacidade de sugestão. É o que acontece no último parágrafo desse conto, em que as ações e os pormenores descritivos do ambiente têm a importante função de sugerir o renascer da personagem: é a réstia de luz que invade o quarto; é a água que escorre pelo seu corpo; são as cores verde e rosa da roupa e do batom; é a mesa bem posta com um café gostoso; são as flores de Irene. Todo esse aparato dá sustentação à imagem concreta da frase “De repente fez-se o avesso”.
As imagens concretas são, aliás, um dos recursos empregados pela autora para expressar a intensidade do sofrimento no conto “A decisão”. Também nesse conto a personagem, abandonada pelo companheiro, mergulha no sofrimento e dele emerge inesperadamente, resolvendo sepultar o passado. Essa decisão materializa-se pela encenação da morte do marido, no final da narrativa, que obriga o leitor a voltar ao início do conto: “Nem quando perdera a mãe o sofrimento tinha sido tamanho. Mas a morte é uma coisa; traição, outra bem diferente”. Era necessário, então, simular a morte do marido para enterrar o sofrimento.
Mas observemos como a autora consegue exprimir esse sofrimento por meio das já referidas imagens construídas sobre elementos concretos: são metáforas e comparações que, ativando as percepções sensoriais do leitor, intensificam as sugestões da dor da protagonista: “plantara com cuidado em terreno fértil”; “como uma bola que alguém sopra, lentamente, até a borracha se esgarçar e explodir”; “Soprando, soprando. Estourou.”; “A matéria purulenta irrompeu de vez”; “as palavras boiavam na superfície, não tinham peso para descer às profundezas da alma”; “tentativas de romper a crosta”.
Em “Vida em três tempos”, temos também um desencontro amoroso: não o abandono nos moldes em que vimos acontecer nos dois contos analisados anteriormente, mas a separação decorrente do desgaste provocado pelo tempo, pela rotina, pela difícil vida a dois, ou melhor, pela indiferença a dois, como a autora deixa entrever nas frases finais: “Enrodilhou-se na velha poltrona, companheira de desilusões, de concessões, de indiferença, fiando e desfiando o interminável instante. Já não eram um. Sem nada dizer. Fingindo não ver, não ouvir. Brigar para quê?”.
O conto, montado sobre uma sugestão intertextual com o poema “Marília de Dirceu”, de Tomás Antônio Gonzaga, inverte, no entanto, os valores dessa obra: no poema árcade, a conjunção amorosa se dá, apesar (ou por causa?) da distância física; no conto, o desencontro ocorre apesar (ou por causa?) da proximidade física. A certa altura da Lira I, quando o sujeito poético diz que os dois amantes, depois de mortos, descansarão sob a mesma terra, podem-se ler os seguintes versos: “Na campa, rodeada de ciprestes, / Lerão estas palavras os Pastores: / ‘Quem quiser ser feliz nos seus amores, / Siga os exemplos, que nos deram estes”. Pois a leitura do conto nos autoriza a inverter esse conselho: quem quiser ser feliz nos seus amores, não siga os exemplos que nos deram estes.
As relações intertextuais se expressam não só no nome dos protagonistas – Marília e Dirceu –, mas também no tom inicial do discurso, impresso pela escolha do vocabulário, principalmente dos adjetivos, e por uma ou outra construção sintática, como a anteposição do adjetivo no sintagma “sonhadora face”: “Voltou aos dias fugazes de uma existência dourada, quando os sinais do tempo ainda não tinham maculado a sonhadora face. Aos bandos, como aves inquietas, passavam de leve, aqui e ali, com seus olhos brilhantes que fitavam o longe, o infinito”.
Progressivamente o tom vai mudando, até que no quarto parágrafo as relações intertextuais se rompem, como a autorizar o leitor a inverter o sentido do poema de Gonzaga. Observemos a descrição da noite que abrigava os amores do casal: “Quando anoitecia, Marília era de Dirceu. Enveredavam por ruas salpicadas de letreiros de gás néon, perdiam-se em andanças por entre bares e boates enevoados de anéis de fumaça, dançavam pelas calçadas de mãos dadas ou se encastelavam enamorados, sussurrantes, desatados da realidade”. É um ambiente que se opõe ao espaço idílico em que viviam Dirceu e Marília no poema árcade. A frase inicial, com os verbos no pretérito imperfeito, apontam para um par amoroso que tanto pode ser o do conto como o do poema, e sugere algo que foi e não é mais. O leitor pode ligar essa frase a uma outra do segundo parágrafo – “Poema antigo”, que tanto se refere ao poema de Tomás Antônio Gonzaga, como ao “poema” vivido pelo par moderno Dirceu e Marília. Esse jogo de ambigüidades, que, como sabemos, enriquece o texto literário, repete-se no terceiro parágrafo: “exigia da mulher bem mais que um simples salto, talvez um salto mortal”, em que o substantivo salto pode ser lido em dois sentidos.
O conto termina com um jogo entre os numerais “dois” e “um”: “Ficaram os dois. (...) Já não eram um”. Levando-se em conta que dois é o “não um”, e um é o “não dois”, a idéia da separação e do seu corolário, a solidão, é reiterada nesse parágrafo: o casamento, que deveria transformar os parceiros em “um só corpo e em uma só alma”, acaba por dividir em dois o que antes era um.
Em “Bumerangue” e em “Aqui, ali, acolá”, temos duas mulheres em fuga, num processo de busca por condições de sobrevivência. Em “Bumerangue”, como o próprio título sugere, a protagonista, depois de fugir de uma situação que, embora a autora não deixe muito claro, parece ter sido a de uma relação amorosa mal resolvida, acaba, por obra do destino, enfrentando situação semelhante. Foi tal e qual um bumerangue que, depois de descrever curvas, volta ao ponto de partida. Parece que, nesse conto, avulta um certo determinismo, uma certa idéia de que é infrutífero lutar contra o destino.
Ressalte-se, dentre outras características desse conto, a concisão, que, para nós, faz dele um dos melhores da coletânea. Há uma riqueza de sugestões, que substituem as explicitudes, e o leitor é obrigado a aceitar as regras impostas pelo narrador: ele precisa preencher os inúmeros vazios do texto para poder atribuir-lhe um sentido. Fica por conta do leitor inferir sobre o passado da protagonista, sobre o motivo da primeira partida e das desavenças com um “ele”, ligeiramente introduzido na narrativa. Observem-se, ainda, as delicadas sugestões da conjunção amorosa entre a protagonista e o “rapazola franzino”: “Nas noites de luar, a lua atravessava as folhas da velha ingazeira e desenhava arabescos nos corpos entrelaçados”. É essa nova relação que a leva a empreender uma nova fuga: o bumerangue voltara ao ponto de partida.
Observe-se como a autora consegue expressar o sofrimento e a angústia da protagonista por meio de frases curtas, sincopadas, mas principalmente por meio de frases nominais que às vezes se sucedem num processo acumulativo, sugerindo uma sensação de angústia, como nas seguintes ocorrências: “Todos os dias. O entorpecimento.”; “Colheita de feijão. Colheita de milho. Colheita de algodão. Farinhada. O esquecimento.”; “Murmúrios. Numerosos. Desavergonhada! Ainda um menino!”.
É de notar, ainda, a maneira como a autora trabalha a palavra, nos parágrafos sete e oito, para indicar o interesse do “rapazola” pela protagonista: “os olhos mornos pesavam sobre ela” / “o peso dos olhos mornos sobre ela”. Nessas duas expressões ela emprega o recurso da sinestesia, que mistura num mesmo processo perceptivo as sensações de peso e de calor. E, ao substituir o verbo “pesar” pelo substantivo “peso”, consegue ainda sugerir um aumento da sensualidade da personagem.
“Penitente”, uma narrativa que desenvolve o motivo do amor incestuoso, traz também, num plano menos aparente, o drama da carência afetiva e da solidão. Conta o conflito de um rapaz que mora sozinho com a irmã, de quem cuidara desde a morte dos pais. Os dois vivem num lugar ermo, um tendo somente a companhia do outro. O fato é que, quando a irmã entra na adolescência, o rapaz começa a desejá-la, sendo atormentado pela culpa. A autora não deixa muito claro se o incesto se consumou, mas o rapaz passa a vagar pelas noites, autoflagelando-se, gemendo e rezando pelo perdão divino, o que faz com que as pessoas espalhem boatos de que o povoado está sendo atacado por um lobisomem.
Esse conto tem muitas afinidades com “O Peregrino” , de Moreira Campos, no qual se consuma uma ligação incestuosa entre um sertanejo chamado Belarmino e a viúva de seu filho. Só que, enquanto no conto de Moreira Campos a relação se dá sem nenhum conflito moral em virtude do primitivismo das personagens, no de Lourdinha Leite Barbosa desenvolve-se a cadeia que denuncia estarem as personagens num nível mais avançado de consciência: da tentação ao ato incestuoso (ou ao desejo de que ele se realize?), que provoca a culpa e o arrependimento, o qual leva à penitência e à esperança da redenção. No conto “Penitente”, manifesta-se a moral cristã na figura de um padre, que ameaça o rapaz com a presença do demônio. Já em “O Peregrino”, o moralismo cristão é amenizado porque aparece na figura de um romeiro, que demonstra no seu primitivismo uma maior compreensão do mundo e de suas dores: “Não teve recriminações bíblicas. Cessaram ali as chamas do pecado, das condenações eternas. Apagou-se o fogo do inferno. Talvez tivesse tido a intuição de que a palavra de Deus era pequena ou grande demais para compreender a necessidade e a solidão”.
É bom notar que a consciência da culpa é tão forte no “Penitente” que ela se materializa na figura do lobisomem, encantamento que, numa das versões da lenda, dá-se em expiação pelo pecado do incesto. No conto, a figura do lobisomem, além de estar na imaginação dos habitantes do povoado, parece manifestar-se no próprio comportamento do rapaz que, nas noites de lua cheia, corria pelas ruas do povoado, gemendo e orando. E diz o narrador, a certa altura do texto: “Ao encontrar uma clareira, espojou-se no chão uivando”.
Merece algumas considerações o conto “A valsa proibida”, que, embora explore um outro argumento, tem como tema a frustração, que desta vez se manifesta não pelo desencontro amoroso, mas pela impossibilidade de concretização de um sonho de vida: a realização artística pelo teatro. No final da vida, a protagonista, Mirta, uma das poucas a quem a autora dá nome nos contos dessa coletânea, monta uma encenação que irá redimi-la de “Uma vida que não se completara. Ficara só nos ensaios”.
A técnica narrativa é a que a autora vem empregando na quase totalidade das histórias da coletânea: um narrador de terceira pessoa, de onisciência total, que às vezes cede a palavra à protagonista, num recurso pelo qual ela se desvela: “Mas era uma questão de ponto de vista, por mais que explicasse suas razões, nenhuma delas compreendia o sentido desse acontecimento. Só ela sabia. Todos esses anos suportando o peso de uma vida vazia. Que desperdício! Tudo por culpa dele.”; “E os seus sonhos não contavam? Os anos de preparação, impostação, gargarejos, agudos e graves? Uma vida que não se completara. Ficara só nos ensaios”.
Nessa narrativa, por meio do recurso do flash-back, o passado se mistura com o presente, para explicá-lo e justificá-lo. E é em um desses movimentos de retorno ao passado que se ouve o julgamento do pai da protagonista sobre a carreira que a filha gostaria de abraçar, expressando uma visão de mundo característica de um tempo em que a vida artística era vedada às jovens de boas famílias: “Não criei filha para subir em palco”; “Que clássico, que nada. É tudo igual. Enquanto estiver sob o meu poder, não sobe em palco”.

As artes do fantástico
Entende-se por narrativa fantástica aquela em que o âmbito do sobrenatural invade o âmbito do natural, geralmente desestruturando-o. Essas narrativas focalizam um fenômeno não explicável pela razão e trabalham, dentre outros, com motivos como o duplo, o retorno ao passado, a ressurreição, a possessão, a metamorfose e a imortalidade. Já dissemos em trabalho anterior (JAGUARIBE, 1997) , que
Pondo em cena o sobrenatural, o gênero fantástico coloca o ser humano diante de mistérios insondáveis e leva-o a perceber que existe algo além do real concreto em que ele vive. Essa percepção o faz encarar a sua impotência diante dos fenômenos do universo, podendo levá-lo ao medo, ao desespero, à morte e, com menos freqüência, à satisfação ou a uma saudável dúvida.
Dentre as seis narrativas fantásticas da coletânea, merece menção a pirandelliana “Vozes que se revelam”, que bem poderia ter intitulado o livro, pelos questionamentos que sugere sobre a criação literária. Pois o que é a literatura senão a expressão de uma voz ou de um concerto de vozes que se revelam para emprestar ao mundo um sentido? O conto se concretiza em uma situação inusitada: a protagonista, Marcela, começa, misteriosamente, a ouvir vozes femininas que lhe parecem familiares, mas que ela não consegue identificar. Depois de algum tempo, consegue relacioná-las a personagens de obras literárias conhecidas: Capitu (de D. Casmurro); Doralina (de Dôra Doralina); Macabéa (de A Hora da Estrela) e Diadorim (de Grande sertão: veredas). A primeira reação do leitor é enxergar uma correspondência entre esse conto e a peça do escritor italiano Luigi Pirandello (1867-1936), Seis Personagens à Procura de um Autor .
Nessa obra, seis personagens irrompem num palco, no momento em que um diretor ensaia uma peça: são personagens esboçadas, mas abandonadas por um dramaturgo, que não escreveu a peça onde elas deveriam ganhar vida; sim, porque, como seres de ficção, só ganhariam vida dentro de uma obra. É o que diz uma das personagens (o Pai) sobre a arte teatral: “Dar vida a seres vivos, mais vivos que aqueles que respiram e vestem roupas! Menos reais, talvez, porém mais verdadeiros”. Esses seres criados pela imaginação estão à procura de um autor que possa escrever o texto teatral que conte sua história. No conto de Lourdinha Leite Barbosa, a situação se inverte: as personagens já tiveram sua história escrita e parecem querer pular da ficção para a vida, num movimento contrário ao das personagens de Pirandello, que querem pular da “vida” para o texto: “ (...) o autor que nos criou vivos não quis, depois, ou não pôde, materialmente, meter-nos no mundo da arte. E foi um verdadeiro crime, senhor, porque quem tem a sorte de nascer personagem viva, pode rir até da morte. Não morre mais! Morrerá o homem, o escritor, instrumento da criação; a criatura não morre jamais!”.
Como obra teatral, a peça de Pirandello propõe questionamentos diferentes daquele que o conto em análise propõe: o direito a uma identidade, num mundo em que o homem, massificado, perde sua autonomia, seu direito de ser um entre outros uns. Parece-nos ser isso o que nos quer dizer Marcela na reflexão final do conto: “Chegaria o dia em que elas teriam que repetir suas falas. Não tinham autonomia para mudá-las. O texto. Estavam presas ao texto, não podiam sair dele. E ela, Marcela, teria voz própria?”.
Mas as vozes não seriam outras vozes da própria Marcela? Não seria a própria Marcela em conflito com seus “outros”, num confronto inevitável a que todos nós somos levados um dia?
A narrativa se faz num ritmo nervoso, que ilustra a angústia vivida pela personagem: a autora constrói frases curtas que nos momentos de maior tensão se atropelam umas sobre as outras, como se pode ver na seguinte passagem: “Subitamente todo seu corpo se retesou. Segredavam-lhe alguma coisa. Procurou manter a calma. O murmúrio foi-se tornando mais claro”. Mais uma vez o narrador de terceira pessoa divide com a protagonista a responsabilidade de contar a história: de vez em quando ouve-se a personagem em discurso indireto livre, como se a voz do narrador fosse incapaz expressar toda a comoção de que ela está sendo tomada: “Coitada! Quanta dor e mágoa em suas palavras! Com quem falava?”; “Então, o que as ligava entre si? O que queriam dela, afinal?; “Meu Deus!... (...) Como pôde Riobaldo enganar-se com essa voz? Medo de saber que o coração do jagunço estava, como o seu, tomado de amor?”.
A leitura de “Cerco” põe-nos novamente diante do drama existencial da frustração. A certa altura da vida, o protagonista se dá conta de que tudo a sua volta começa a ruir: perde a mulher, o emprego, os amigos; até os filhos parecem abandoná-lo. Esse acúmulo de pequenas tragédias é representado pelo encolhimento do espaço em que vive a personagem, daí o título do conto. À proporção que as paredes vão se aproximando e sua roupa e sapato encolhendo, o homem entra em desespero e a narrativa termina com a sugestão de sua morte, que seria a capitulação às contingências da vida.
Diante da situação insólita, o homem tenta racionalizar: “Talvez tudo não passasse de alucinação.”; “Será que essas coisas estavam mesmo acontecendo ou seriam seus nervos?”. Essa é uma das características da narrativa fantástica. Na impossibilidade de entender o que está afetando o equilíbrio de sua vida, as personagens sempre procuram uma explicação que desfaça a sensação de estranheza que as está dominando. Pois é também essa a atitude dos seres humanos diante de fenômenos inexplicáveis. A necessidade de uma explicação coerente para determinados acontecimentos nos faz buscar justificativas que vão do sonho ou pesadelo à farsa, ao nervosismo e até à loucura. Para o homem, a possibilidade de estar ensandecendo é mais confortável do que a de estar sendo dominado por um fenômeno sobrenatural.
Observe-se que o impacto do conto sobre o leitor decorre em grande parte da condensação do texto: os fatos são fornecidos sem detalhes, como acontece com a notícia inicial da separação; quando alguma explicação é dada, a autora o faz de forma tão rápida e crua que vai deixando no leitor uma sensação de desconforto: “outra rasteira: despedido por contenção de despesas”. As relações entre as frases também são muitas vezes suprimidas, de forma que as informações vão se acumulando como se também fechassem um cerco: “(...) a mulher pediu que fosse morar noutro lugar. Mudou-se para uma pequena casa e levou seus objetos pessoais.”; “Uma mudança sem grandes sustos. Tinha dois filhos casados, cinco netos e a certeza de ser amado por eles”.
“Uma paisagem quase perfeita” é, sem dúvida, a mais bela realização dessa coletânea, por isso o deixamos para o final de nossas considerações. A história, também fantástica, é de uma trágica beleza: cinco irmãs vivem enclausuradas em um mundo criado pela imposição do pai, um mundo sem sons, sem alegria; um mundo de confinamento, quando elas “sonhavam com grandes espaços, vastidões sem fim”. Do outro lado de seu mundo limitado estava “o infinito”, com o qual elas só podiam sonhar. Eram dois espaços que não se podiam misturar. Mas, apesar de tudo, elas iam vivendo. Até que um dia aquele espaço foi invadido pelo outro, representado por um jardineiro: “O pai permitiu que uma figura masculina penetrasse no mundo feminino”. Essa intromissão bastou para que o mundo das cinco irmãs começasse a esfacelar-se. Enquanto elas foram resguardadas, o seu mundo foi preservado; bastou, no entanto, o contato ainda que indireto com o outro lado para que se manifestasse a inquietação e se desse o esfacelamento. Enquanto não havia sido divisado o outro lado, as irmãs puderam prosseguir vivendo, embora precariamente; bastou, todavia, que esse outro lado fosse vislumbrado para se tornar impossível a existência de um único mudo isolado.
A autora consegue com muita propriedade, por meio da imagem dos pequenos incêndios, sugerir a energia oriunda do contato entre os dois pólos – o negativo (o mundo das irmãs) e o positivo (o mundo do jardineiro). Não há, na realidade, como se poderia pensar em uma primeira leitura, a simples sugestão da completude sexual no sentido ordinário; há mais: há a sugestão maior da completude entre o princípio feminino e o masculino, sem a qual não existe equilíbrio. O desequilíbrio provocado pelo interdito acaba por destruir as cinco irmãs.
Observe-se que nesse conto os elementos invertem-se, se considerarmos o que costuma acontecer na narrativa fantástica: o casarão, com sua realidade assustadora, espaço que toma ares fantasmagóricos, é perturbado pela invasão do natural – o jardineiro. A própria narradora refere-se a essa invasão como um “acontecimento inesperado”. E é a presença desse elemento natural que vai desencadear a situação fantástica.
Diferentemente dos outros contos, este apresenta um narrador de terceira pessoa que não cede a voz às personagens, nem pelo discurso indireto, nem pelo indireto livre, muito menos pelo direto. O silêncio que imperava no casarão propaga-se pela instância narrativa e as emudece. A estrutura narrativa circular (o final do conto repete o parágrafo inicial) intensifica ainda mais a sugestão de isolamento do casarão: um grande muro parece ter sido erguido ao redor da construção para impedir a penetração do que está do outro lado, intensificando o interdito.
Observe-se a relação que a autora estabelece entre os nomes e as características das personagens e o processo degenerativo que acaba por destruí-las: Clara escureceu; Margarida amarelou e despetalou; Magnólia (a mais gordinha) murchou e liquefez-se; Aurora (alegre e falante) emudeceu e Eugênia (a que tinha a responsabilidade sobre as irmãs) enlouqueceu e explodiu em chamas. É como se o processo destrutivo atingisse a própria essência desses seres, para quem não haveria possibilidade de salvação fora do contato com o outro mundo que fora vislumbrado.

Com permissão da arte
Sendo instância fundadora, a palavra não poderia deixar de ser, também, instância destruidora. Eis o perigo que corremos quando nos propomos estabelecer uma interlocução com o discurso artístico. Será nossa palavra capaz de desvelar, a título de crítica, de análise ou de simples comentário, a complexidade desse discurso? Há sempre o perigo da empatia, da parcialidade, do gosto, dos valores, que podem nos levar a enfatizar o que tem menor peso, ou a desprezar o que tem algum valor.
Mas, já havendo corrido esse risco, só me resta assumir a responsabilidade por tudo que me atrevi a dizer até aqui e pelo que direi a partir de agora.
Os contos de A arte de engolir palavras conseguem falar fundo à alma do leitor, principalmente porque, em sua maioria, navegam sobre um substrato de universalidade. Em boa hora se constata que, nestas paragens do Nordeste brasileiro, mais um escritor consegue se libertar do vício da escritura com gosto regionalista e fala dos dramas do homem enquanto ser humano apenas, independente do espaço em que se situa.
Sem dúvida, nem todas as pequenas histórias da coletânea de Lourdinha Leite Barbosa merecem aplausos, ou porque o discurso narrativo não flui com a desenvoltura esperada de um bom contista, porque as personagens não têm a consistência desejada, ou ainda porque o signo não atingiu o nível do artístico. Mas essas são poucas, e esse julgamento deixamos por conta de cada leitor em particular. Há, no entanto pequenas jóias, como “Uma paisagem quase perfeita” ou “Tudo em seu devido tempo”. O saldo é, realmente, positivo.
Sem pretensões de revolucionar a arte de contar histórias e ficando num território que lhe é familiar(pois só se fala bem daquilo que se conhece), a autora mostra-se uma competente contadora de histórias a nos abrir portas e janelas para um mundo que, embora conhecido – e talvez mesmo por esse motivo –, fora neglicenciado pelos nossos olhos.

2 comentários:

Anônimo disse...

O texto da Vicência é tão bom, que nos dá vontade de reler os contos, que, como ela diz, tocam nossa alma.

Margleice Pimenta disse...

É um belo texto realmente! Só de ver esse artigo, dar para imaginar que é um ótimo livro.
Um abraço,
Margleice