segunda-feira, 20 de abril de 2009

Uma paisagem quase perfeita




O casarão antigo, o porão escuro, o grande quintal cheio de árvores. Uma paisagem perfeita, não fosse a ausência de sons. Não se ouviam vozes. Só o barulho do vento nas folhas e o gemido das dobradiças no vaivém de portas e janelas.

As falas emudeceram há muito. Desde que as jovens mulheres da casa perderam a esperança. Eram cinco. Eugênia, a mais velha, tinha ordens do pai de cuidar das irmãs. Nunca gargalhar. Conversar pouco. Rezar sempre.A mais difícil de controlar era Aurora. Tão jovem e alegre. Vez por outra, assustava o silêncio com uma gargalhada sonora. Margarida, Clara e Magnólia, caladas e tristes, obedeciam às regras. Todas sonhavam com grandes espaços, vastidões sem fim e, quando não vigiadas, corriam à janela em busca do infinito, mas seus olhares não iam além da rua em frente e das coisas costumeiras que suas retinas guardavam como tesouros: uma borboleta, um bem-te-vi, um burrinho amarrado a uma árvore. Os dias escorriam tão lentos, quanto o rosário que eram obrigadas a rezar todas as noites.

Um acontecimento inesperado veio suspender a monotonia. O pai permitiu que uma figura masculina penetrasse no mundo feminino. Apenas no quintal e jardim. O pomar precisava de braços fortes.Olhos desassossegados passaram a perscrutar os recantos mais distantes, a demarcar espaços à procura de postos de observação. Uma onda de calor propagou-se pela propriedade, provocando pequenos incêndios.No quarto fechado e silencioso, as madrugadas alongavam-se e as moças se revolviam insones até os primeiros clarões do dia.

Clara foi a primeira a padecer: inesperadamente escureceu. Passos cuidadosos se multiplicaram e entrecortaram o silêncio. Banhos medicinais. Bacias e mais bacias. Cheiro de éter. Cochichos. Clara, antes tão clara, foi empretecendo e terminou negra como a escuridão.Não demorou muito e Margarida amarelou. Despetalou aos poucos, as pétalas foram caindo uma a uma. Desnudou-se. O vigário foi chamado e trouxe água benta, a benzedeira, um ramo de arruda e as mulheres da cidade, braçadas de margaridas. Nesse dia, o pai teve de abrir as portas de par em par. As flores se esparramaram pelas salas, despencaram pelas calçadas, amarelando toda a vizinhança.Numa noite de intenso calor, Magnólia, a mais gordinha de todas, começou a murchar. Os lençóis embebidos de suor eram substituídos por outros e mais outros. As empregadas, lançadeiras intermitentes, para lá e para cá. O quintal cheio de cordas, cobertas de panos brancos ao vento. A moça desmanchava-se em água, escorria pelo piso e ganhava as ruas. Pela manhã restava só um fio sobre a cama.Aurora, tão solar, anoiteceu repentinamente. Perdeu a alegria e a voz. Não mais saiu do quarto. O olhar perdido no nada. Sem palavras, os lábios foram afinando, afinando, se tornaram um traço fino e desapareceram de vez.Eugênia desesperou-se, correu pelo quintal, rasgou a roupa, arranhou-se nos cipós e, enlouquecida, explodiu em chamas.

O casarão antigo, o porão escuro, o grande quintal cheio de árvores. Uma paisagem perfeita, não fosse a ausência de sons. Não se ouviam vozes. Só o barulho do vento nas folhas e o gemido das dobradiças no vaivém de portas e janelas.

("Uma paisagem quase perfeita", do livro A arte de engolir palavras)

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