terça-feira, 21 de abril de 2009

Descortinando a paisagem quase perfeita


A produção literária de Lourdinha Leite Barbosa dispensa qualquer comentário. Alguns críticos especializados já se encarregaram de destacar seus contos e ensaios, incluindo seus trabalhos em conceituadas publicações.

O domínio da linguagem e o apuro da correção permeiam sua obra e denotam a intimidade com que a autora lida com a palavra. A originalidade de suas criações incita a nossa imaginação e comprova a qualidade estilística de sua escrita. Entretanto, isso não é tudo, como leitora, espero mais do que um texto bem escrito; é preciso seduzir e enredar o leitor com uma boa história. Essa é a arte que Lourdinha sabe fazer com talento e sensibilidade; tanto que, aqui e ali, somos instigados a mergulhar novamente em seus contos em busca de novos desdobramentos.

Quando relemos uma história, algo novo se revela, renovam-se as possibilidades de leitura. Esta que se segue é apenas uma sobre “Uma paisagem quase perfeita”, inúmeras outras poderão ser realizadas.

As protagonistas desse conto transitam numa atmosfera simbólica, deixando silenciosamente vestígios de dor e desesperança. São cinco mulheres sem brilho, sem cor e sem voz. A casa é sua prisão, o carcereiro, o pai castrador e habilidoso em submetê-las à lei. Como repressor de suas vidas eróticas, é ele que limita o gozo e barra seus impulsos desejantes. O “casarão antigo” nos remete ao passado. Lá, afetos e lembranças são guardados “num porão escuro”, obscuro e enigmático, arquivo de suas fantasias femininas. O “grande quintal cheio de árvores” é um lugar proibido, onde elas receiam aventurar-se. A autoridade paterna, introjetada em seus egos, deu origem a um superego ameaçador e exigente.

A “paisagem quase perfeita” emoldura e paralisa as cinco mulheres amordaçadas, caladas à força. Ali, “Não se ouviam vozes”, embora as vozes interiores não sossegassem e teimassem em se manifestar, pois “todas sonhavam com grandes espaços, vastidões sem fim”. Nos sonhos, seus desejos se realizam de forma disfarçada, dando-lhes a ilusão de que seus espaços se expandem em direção a um objeto que mantém e reaviva constantemente a pulsão erótica. Assim, a “ausência de sons” não impede que o discurso de suas almas silenciosas seja melodiosamente embalado “pelo barulho do vento nas folhas e o gemido das dobradiças no vaivém de portas e janelas”.

O equilíbrio é mantido pelas interdições: “não rir muito, conversar pouco”. Elas se defendem da desconfortante e inesgotável atividade de Eros, sublimando seus desejos nas contas do “rosário que eram obrigadas a rezar todas as noites”. A ordem era “rezar sempre”, buscando compensar suas frustrações, deslocando o prazer para a satisfação espiritual e o transcendente.
Esgotadas pelo isolamento e incompletas pela ausência do outro, que as constituiria como sujeito, as cinco mulheres são surpreendidas por um “acontecimento inesperado”: “O pai permitiu que uma figura masculina, penetrasse no mundo feminino”. Aqui, a autora lança mão da ambigüidade da palavra “penetrar” e, através da sugestão, oferece indícios das conseqüências dessa intromissão.

Se, como afirma George Bataille, o desejo prepara uma fusão na qual se misturam dois seres em busca de continuidade e completude, vemos então que o outro é essencial para que um sujeito entre na dialética lacaniana, ou seja, tenha como objeto do seu desejo ser o objeto do desejo do outro. Além do mais, com a suspensão da lei paterna, instala-se a transgressão, elemento da atividade erótica.

A partir daí, o silêncio é quebrado e o desejo violentamente exposto; regras e limites são violados em busca do prazer disfarçadamente resignado ao confinamento. Convém lembrar que, para Freud, o que é reprimido sempre retorna e o retorno do recalcado cobra um preço: a angústia que advém do conflito entre o princípio do prazer e o princípio da realidade. A narrativa ganha uma vivacidade própria e, uma a uma, as cinco mulheres são envolvidas por “uma onda de calor que se propaga pela propriedade”. Ligam-se os corpos, os seres e as coisas; a quantidade de calor é excessiva para quem sentia sua vida reduzida a cinzas.

Assim, “Clara foi a primeira a escurecer”, assustada com o fascínio que exercia no outro. Ao negar oferecer-se como objeto brilhante, “terminou retinta, negra como a escuridão”, que insistia em não abandonar. “Margarida amarelou”, desvirginada “se desnudou”. Criou vida própria, espalhou sementes onde antes a terra era estéril. “Nesse dia o pai teve que abrir as portas” e permitir a vazão da paixão que rompia regras impetuosamente. Magnólia “desmanchava-se em água”. Fervia. Não houve como retê-la, “escorria pelo piso e ganhava as ruas”. O grande reservatório libidinal rompeu-se sob o jugo do princípio do prazer. Magnólia dissolveu-se no desejo do outro. Já Aurora, “tão solar, emudeceu”. Voltou à obscuridade, angustiada pelo medo de ser punida. “A voz calou” e optou por repetir o fracasso e conviver com a dor já conhecida. Por precaução, cerrou os lábios que “desapareceram para sempre”. Eugênia, “enlouquecida, explodiu em chamas”. Ateado o fogo transformador, que ardia como brasa sob o silêncio, o efeito foi devastador. Não suportou a embriaguez de tanto oxigênio. Iluminou a “paisagem quase perfeita” como fogos de artifício.

Não é por acaso que, mais uma vez, Loudinha Leite Barbosa traduz em cenas de rara beleza as inquietações e expectativas do universo feminino. Afinal, o centro das atenções da autora é a grandeza trágica da condição de ser mulher, conforme ensaio de Vicência Jaguaribe (2001).
A nosso ver, o conto, “Um paisagem quase perfeita”, pode ser interpretado como uma metáfora do desejo. As cinco personagens revivem, através do pai, a atualização constante da castração, criadora da falta. Como seres faltosos, vivem em busca de algo que foi perdido para sempre e, se foi perdido, jamais será reencontrado. A princípio, a insatisfação é sublimada e a angústia canalizada para a oração, porém a entrada em cena do outro modifica o quadro.

A intromissão se dá pelo relaxamento da lei paterna e, como conseqüência, elas são tomadas, incondicionalmente, pelo princípio do prazer. O excesso de energia, recalcado por anos a fio, investe libidinalmente este outro que passa a ser visto como objeto de seus desejos. Deixam-se, então, levar pelas exigências da pulsão erótica que anseia à liberação total.

O conto de Loudinha Leite Barbosa tem como tema a resposta metafórica que cada uma das cinco mulheres dá a excitações pulsionais tão intensas. Regidas pela lógica do desejo que toma proporções extremamente invasoras, todas são psiquicamente afetadas e o resultado é um desfecho trágico e destruidor.

Somos inclinados a duvidar que a obtenção absoluta de prazer cause tanto dano. Entretanto, se aceitarmos que é a tensão gerada pelo antagonismo entre a pulsão de vida e a pulsão de morte (Eros e Tanatos), o que nos mantêm vivos e, se compreendermos que o que nos mobiliza é a incansável busca de um objeto que preencha aquilo que nos falta, fica claro que a eliminação absoluta da tensão é hipotética e que a falta nos constitui enquanto sujeitos.

Somos, assim, condenados a satisfazer, apenas parcial e moderadamente, nossos anseios. A saída é a aceitação da impotência e da incompletude; o contrário seria destrutivo para o equilíbrio de nosso aparelho psíquico, pois a satisfação total imobilizaria o circuito do desejo e a ausência de tensão significaria o retorno ao estado inorgânico, ou seja, a morte.

Desconsiderando que se faz necessário impor algum controle às exigências de Eros, as cinco mulheres sucumbem no esforço de preencher o vazio e zerar a excitação interior, permitindo seu total escoamento.

Tanto é verdade, que o próprio Freud fundamentou sua interpretação da interdição como uma necessidade primitiva de proteger o homem do excesso de desejos. Como esclarecimento, vale lembrar que o desejo não se refere apenas às satisfações genitais, mas a todo tipo de satisfação humana. As cinco personagens do conto não poderiam encontrar um final diferente: explodir, calar-se, dissolver-se, despetalar-se e escurecer.

O intrigante é que com todo este rebuliço a paisagem continuou igual: “quase perfeita não fosse a ausência de sons”.

Bia Jucá - Psicóloga.

Bibliografia:
FREUD, S. O Ego e o Id. In: Edição Standart Brasileiradas Obras Completas de Sigmund Freud. v. XIX. Rio de Janeiro: Imago, 1979.
MEZAN, Renato. Freud pensador da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1990.
NASIO, J. David. Os 7conceitos cruciais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
BATAILLE, Georges. O erotismo. Porto Alegre: LP&M, 1987.LEITE BARBOSA, Lourdinha. A arte de engolir palavras. Recife: Bagaço, 2001.

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