sábado, 27 de novembro de 2010

Ancoragem em porto aberto

Lourdinha Leite Barbosa

Ancoragem em porto aberto, livro de contos de Vicência Jaguaribe, surpreende-nos pelo tratamento dado à linguagem, pela construção dos enredos e pela caracterização das personagens. São trinta e seis contos, que abordam diferentes temas, embora a morte, em todas as suas formas, seja uma constante nesta obra, outros temas também estão ancorados em porto aberto, como a crueldade, a sedução, a traição e os desencontros amorosos.
Em “Uma palavra ao leitor”, a autora explica o belo título do livro, que também traz dois textos que desvelam alguns sentidos ocultos nos contos: “O olhar do leitor”, de Bia Jucá, e “Apresentação”, de Mônica Magalhães Cavalcante.
Vicência Jaguaribe, que hoje ancora em outro porto aberto, que é também o porto das publicações, é professora de estilística, de língua portuguesa e de literatura, mas, muito antes de conhecer a teoria, ela já conhecia a literatura através dos livros que lia vorazmente em criança e continua lendo pela vida afora. Mas, além de ser uma devoradora de letras, ela é também uma observadora atenta, possui uma memória extraordinária e muita imaginação. Com tais características o que mais pode desejar um escritor?
Segundo Antônio Cândido, no processo de criação combinam-se memória, observação e imaginação, em graus variáveis, sem que o próprio autor seja capaz de determinar a proporção de cada um desses elementos, uma vez que boa parte desse processo ocorre na esfera do inconsciente e chega à consciência sob formas disfarçadas que podem enganar. No entanto, muitos romancistas deixaram ou deixam elementos para se avaliar o mecanismo de criação de suas personagens; assim o fizeram José Lins do Rego, em Menino de Engenho, Proust, no célebre, Em busca do tempo perdido, Rachel de Queiroz, em seus romances. Vicência também se vale constantemente da memória. Ela mesma afirma, no início deste livro, que as histórias contadas por pessoas da sua família emergiram de sua memória e transformaram-se em matéria-prima de seus contos.
De fato, os contos, em sua maioria, têm, como ponto de partida, acontecimentos reais, mas a imaginação supera o fato verdadeiro e suas personagens ganham vida própria através da linguagem artisticamente trabalhada que lhes deu forma, por isso elas estão impregnadas de vida, uma vida cheia de tropeços e riscos, É essa humanidade que torna suas figuras de linguagem e de papel tão reais, que, ao lermos um de seus contos, encontramos semelhanças entre elas e as pessoas com quem convivemos.
Devido ao grande número de contos, todos eles de excelente qualidade, tornou-se difícil fazer uma seleção. Escolhemos, portanto, três textos de diferentes temas.
O conto que dá início ao livro, “Trazida numa rajada de vento”, que tem como epígrafe uma passagem do conto Dizem que os cães vêem coisas, de Moreira Campos, é um bom exemplo dessa criatividade, por sua estrutura e pelos recursos estilísticos utilizados. Apesar de a morte do pai da autora ser o fato gerador da narrativa, o que avulta é a invenção.
A história tem uma duração determinada, começa na hora do café da manhã e termina exatamente às 3h15min da tarde. Numa narrativa de tempo cronológico, nós, leitores, acompanhamos o percurso da personagem principal, um fabricante de redes, que, sem saber, é seguida de perto pela morte, desde o momento em que Ela apeia-se das asas do vento e senta-se à mesa com ele, até o instante em que Ela parte numa “rajada mais forte de vento, acompanhada de areia”. Merece um aparte o uso do verbo apear (descer da montaria ou veículo), regionalismo usado pela autora, em sentido figurado. A morte é personificada, mas não é nomeada uma só vez. Embora o narrador seja onisciente, ele se atém ao uso do pronome Ela (com letra maiúscula), mas, em compensação, encarrega-se de nos dar, aos poucos, os indícios de que a personagem está próxima do fim, restam-lhe somente algumas horas, como também pistas textuais de que Ela é a morte. O fluir do tempo é medido pelos sintomas da doença, que vão se agravando num crescendo do mais leve estremecimento à explosão final.
“Crueldade infantil” é outro conto baseado em um fato real. Vicência o dedica à menina em quem se inspirou para criar a personagem e, inclusive, pede-lhe desculpas pelo ocorrido. As personagens são três: duas irmãs de família abastada e uma menina pobre, parenta delas. Mas apenas uma das irmãs, a devoradora de livros, e a menina pobre participam diretamente da narrativa. Os fatos são contados por um narrador onisciente, que penetra na mente da garota pobre e revela seus pensamentos e sentimentos. É através desses pensamentos que conhecemos a condição econômica das irmãs e da própria menina pobre, as preferências delas em relação ao entretenimento e também o medo que ela tinha de quebrar algum objeto valioso da casa e ter que pagar.
Nesse conto, em diversas passagens, a voz do narrador confunde-se com a voz da menina, o que caracteriza o discurso indireto livre, mas, na maioria dos contos de Ancoragem em porto aberto, predomina o discurso indireto, embora, vez por outra, a autora utilize-se do discurso indireto livre e do discurso direto.

A fábula gira em torno de uma pequena bailarina de porcelana branca que ficava sobre a mesinha de centro e era o objeto do desejo da menina pobre, cujos olhos enchiam-se de lágrimas só de vê-la. As irmãs não davam a mínima importância ao bibelô ou às bonecas, uma delas só pensava em andar de bicicleta e brincar de esconde-esconde, e a outra só queria saber de livros, enquanto a menina pobre dava tudo para ter uma bailarina igual àquela. A complicação começa quando a menina sente falta do bibelô e a devoradora de livros diz que ele caiu e se quebrou. O clímax ocorre no momento em que a menina que tinha a cabeça cheia de livros faz uma proposta surpreendente à menina pobre e ela aceita, pensando somente no prêmio final. Essas duas passagens possibilitam uma leitura mais aprofundada (que não pode ser feita neste momento). A autora consegue descrever, com excelência, a manipulação realizada pela devoradora de livros para conseguir seu maléfico objetivo e a credulidade, a piedade e o amor demonstrados pela menina. Esses sentimentos contrários são revelados através de palavras, gestos, atitudes e expressões faciais das personagens. Após a dura prova realizada pela menina pobre, chegamos ao final da narrativa com uma sensação de ardor na boca.
“Pousa a mão na minha testa” é um conto fantástico, que aborda a viagem ao passado, mas, diferentemente da linha tradicional, surge revestido de uma perspectiva moderna. A personagem do conto amanhecera com o verso de Bandeira na cabeça: Não te doas do meu silêncio. Mesmo cheia de afazeres, não conseguia se livrar do verso. Por fim, lembrou-se de que, há muitos anos, brigara com o namorado e, como forma de reaproximar-se, mandara-lhe esse verso e pedira que ele procurasse o poema e o completasse para ela. A família do jovem mudara-se da cidade e ele nunca lhe deu resposta. Ela não entendia por que, de repente, as lembranças do passado invadiam o presente. E mais assustada ficou quando abriu o computador e leu o verso seguinte do poema na página branca do Word. E, apesar de todas as providências terem sido tomadas, os versos foram surgindo na tela do monitor até completar-se o poema, sem que a personagem encontrasse explicação plausível para o fato. A chegada de uma carta enviada pela filha de Mauro, o ex-namorado, na qual ela dizia estar enviando-lhe um envelope a pedido do pai, que falecera há quinze dias, tornou o fato mais inexplicável ainda, pois ele morrera exatamente no dia do acontecimento insólito. Dentro do envelope estava o poema completo e o pedido de perdão.
A professora e escritora Aíla Sampaio, em Os fantásticos mistérios de Lygia, afirma que a viagem no tempo encontra-se entre os motivos mais utilizados pelo gênero e cita o caso da personagem Laura, de “Noturno Amarelo”, que volta ao passado para pedir perdão à família por todas as promessas não cumpridas. Em “Pousa a mão em minha testa”, a personagem Mauro, na hora da morte, utiliza-se de um meio de comunicação ultramoderno para pedir perdão à antiga namorada. Como se disso dependesse o sucesso da travessia final. A viagem ao passado se faz apenas através das lembranças da mulher, sem nenhuma anormalidade. O que ultrapassa o senso racional e instaura o inexplicável é o fato de um computador digitar sem o comando de alguém, e sem que haja qualquer alucinação ou embuste.
Para encerrar estas considerações, queremos destacar, ainda, os contos alegóricos: “O jogador”, “Mais uma última partida”, “A outra partida” e “O abissal Rio-Oceano”, todos eles metáforas da difícil arte de viver.

2 comentários:

Vicência Jaguaribe disse...

Lourdinha, ficou muito boa a apresentação. Obrigada. Não sei se o livro merece tudo que você disse. Vicência.

Silenciosamente ouvindo... disse...

Agradeço muito seu registo no meu blogue.
Nos iremos encontrando.
Desejo o melhor 2011 possível para
si e para os seus.
Aqui em Portugal vamos ter um ano
muito mau, mas temos que ter fé.
Um beijinho.Irene