sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Leitura investigativa do conto Além das Aparências

Quem conta um conto acrescenta um ponto. Pelo visto quem o lê também o faz. Assim, ao finalizar a leitura deste belo texto da escritora Lourdinha Leite Barbosa, senti-me encorajada a seguir o adágio popular. Sem pretensão de fazer crítica literária, esta é apenas a leitura de alguém que reconhece o valor e a necessidade da criação ficcional.

A autora antecipa pelo título, "Além das aparências", a ultrapassagem do círculo limitante da realidade imediata. Para isso mergulhou em profundas águas de onde foi capaz de apreender inumeráveis facetas da experiência humana e, quem sabe, nos tornar conscientes delas. Afinal, através da recriação, a literatura mostra que o real pode ser transformado.

Utilizando-se de uma linguagem elaborada, que em várias passagens beira o poético, Lourdinha fala da necessidade que tem o ser humano de completar sua vida incompleta. As personagens são anônimas, apenas um homem e uma mulher. Entre eles um abismo de anseios, angústias e segredos: "...loucos pensamentos na constante tentativa de captar o mais leve estado da alma daquela mulher cujo corpo ele já possuía". Frente à impossibilidade de ser plenamente saciado pelo objeto de seu amor, o homem se mostra insatisfeito. O desnudamento já não é suficiente, é preciso atingir o ser da parceira. O homem quer, além da violação do corpo, a da alma e constata, por conta disso, que "então ele não tinha nada, somente um invólucro sem conteúdo".

Isso nos remete ao primitivo anseio de fusão e apoderamento própria da relação simbiótica. O homem se apega à ilusão de que ao "tê-la por inteiro", ao "ultrapassar a matéria e chegar à essência", ao se dedicar à inconcebível posse da mulher, será possível reencontrar a unidade perdida.

Exaspera-se e "sai como um louco, observando as mulheres que se desdobram em busca da vida, enquanto escondem nos bolsos os sonhos mais caros". Com apurada sensibilidade, Lourdinha leva-nos a pressentir que o personagem, num estado de total solidão, identifica-se com todos que pagam por aqueles corpos, sem compreender exatamente o que procuram. Mas ele sabe. Sabe que mesmo quando a mulher se oferece não se entrega totalmente. Recusa a associação que se insinua entre a mulher que não lhe dá a alma e aquelas que vendem o corpo. Sente que o amor tem seu custo.

Sua mente não se aquieta, os mesmos pensamentos repetidamente recomeçam: "...que sonhos ela guardaria?" A cabeça explode, a energia se esvai "cresce a ânsia de tê-la por inteiro". Os traços obsessivos se agigantam e a neurose se instala. Engessado em si mesmo pensa, pensa, pensa tanto, que paralisa qualquer ação.

A mulher chega, "inconsciente do conflito que provoca no marido", quer apenas o reconforto do retorno. Liga a televisão, única voz que há tempos agita a monotonia e o tédio cotidianos. Está só e "descobre nos olhos que a observam do espelho o desgaste provocado pelo fluir do tempo". Talvez pense nos sonhos, emoções e fantasias nunca compartilhadas.

Afasta a melancolia e com "um toque no controle remoto desliga a realidade", a sua e a do mundo. A alma continua do mesmo modo: inviolada.

Nenhum diálogo, nenhum movimento em direção ao outro. O homem que sonha em capturar a alma da mulher ignora que juntos, homem e mulher se fortalecem. Persiste, então, entre eles um silêncio sepulcral. Nenhuma palavra escapa ou mesmo surpreende.

O homem, "na madrugada, demora o olhar sobre a mulher" e "cobre-lhe o rosto com o lençol", quem sabe por não suportar o que vê em si mesmo através do rosto dela.

BEATRIZ JUCÁ
COLABORADORA*
* Psicóloga

Nenhum comentário: