sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Traços do estilo

(ontinuação do texto de Laéria Fontenele)

Publicado em 16 de outubro de 2011
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Mas como ela o faz? O narrador persegue com vigor o núcleo da palavra por intermédio da figura-imagem, mas o que tem por resultado é atualização da distância da sua zona de silêncio. Por isso mesmo, muitos dos contos de Lourdinha Leite Barbosa são prenhes de cromatismo, são picturais. Por isso, observamos que, pela moldura da janela, a voz narrativa atualiza apenas um momento do olhar, o que separa o horizonte que os olhos vislumbram sempre tão longe e aquilo que nos é mais íntimo, nos é mais fático e mais banal. Esse é o justamente o instante responsável por separar a ficção e o osso da realidade. (Texto IV)

Nos diversos contos do livro podemos constatar que o mundo, como espaço de sentido, é desarmônico, tanto quanto o é a realidade cotidiana vivida pelas personagens e o que se projeta para além dela como espaço do desejo. Mas nem mesmo a fantasia, que o horizonte vislumbrado pelo olho do narrador aciona, é capaz de promover a simetria dos elementos, das coisas e, sobretudo, do querer de homens e mulheres, algo insiste em não significar apesar da potencialidade polifônica do significante, tão presente nos contos. É justamente a exposição disso que está para além do sentido o que dá, a nosso ver, uma tonalidade sutilmente erótica à ficção de Lourdinha Leite Barbosa, mas também é o que se torna imperativo à própria feitura dos seus contos: a concisão, ou seja, a precisão com que trabalha a linguagem e a brevidade narrativa, que resulta em tentar capturar o que há de fugidio no próprio instante em que olhar se destaca do olho e cai, tornando baça a vidraça da janela.

Eles & elas

A tela da fantasia, projetada nos contos de Lourdinha Leite Barbosa, também revela a dissimetria entre eles e elas; não à toa, a vez deles e delas não é a mesma. Essa demarcação da diferença entre o querer feminino e masculino se manifesta não apenas nos caminhos e descaminhos de homens e mulheres, vistos a partir do olhar do narrador. ou nele encarnados, mas na própria estruturação do livro. Tal modo de dispor os contos no espaço do livro mostra que, apesar de seus poderes, a fantasia não é capaz de reunir numa só tela a vez deles e a vez delas. (Texto V)

A seu modo, Lourdinha Leite Barbosa revela, por intermédio do literário, que o muro que separa o homem da mulher é o mesmo que separa os Falaseres do mundo, mas mesmo que as palavras possam servir de pontes entre eles, serão apenas ponte, frutos de uma construção, e que às vezes desabam ou são corroídas pelo tempo. Mas o que faz das personagens homens ou mulheres? É, justamente, a projeção fantasística do narrador que, ao tentar diminuir o abismo que os separa, oferece ao olhar do leitor, despertando-o para a problemática reprimida da alteridade e convidando-o para recompô-la por meio do gozo da obra, onde o leitor poderá, conforme Paul-Laurente Assoun, gozar suas próprias fantasias sem qualquer reprovação ou qualquer vergonha.

Narrador & leitor

Não se trata do narrador transferir a sua fantasia para o leitor, mas deste ter sua fantasia restituída por aquele, por isso a leitura é prazerosa e distrai. Ocorre no ato da leitura a produção de prazer. O narrador de Pela moldura da Janela oferece-se ao seu leitor de modo a ser por este tomado como alteridade simbólica. Com isso busca proporcionar a descarga da tensão que a própria narrativa constrói. Por isso, a leitura é uma poderosa distração, provoca satisfação e alívio. A estrutura do chiste, que consiste num processo social entre o narrador da piada, o seu destinatário e a iluminação que provoca o riso, se encontra presente no modo como se dá o enlace entre o narrador e o leitor implícito da ficção de L. L. Barbosa. Aí o prazer confina com a realização do sentido do chiste, o que se encontra sugerido nas entrelinhas do discurso ficcional. Do seu dito salta o dizer; de sua escrita, cores e ritmos. Palavras cambaleiam sob agitadas águas, mas não afundam.

Trechos

TEXTO IV

Uma poeira fina cobria móveis e invadia frestas,e o constante baticum impedia qualquer tentativa de sossego. Mas tudo isso não era nada, se comparado às mudanças ocorridas no comportamento dos moradores. Antigos hábitos tiveram de ser abandonados: ninguém mais circulava só de roupa de baixo ou saía do banheiro enrolado em toalha. Agora, a preocupação era com cortinas e janelas. Cuidado! Feche a cortina. Está muito quente! Abra a janela só um pouquinho. A primeira providência foi colocar uma película escura sobre as vidraças, mas essa solução trouxe novos problemas: quando se fechavam as janelas, era preciso acender luzes
e ligar ventiladores ou aparelhos
de ar -condicionado.

("Mas que los hay, los hay", p. 37)

TEXTO V

Equilibrando -se entre imagens, letras e sinais de trânsito, estacionou em frente ao colégio. O garoto saiu numa desabalada carreira, sem que ele pudesse
detê -lo. Tentou acompanhá -lo e quase foi atropelado por um grupo de palavras que se embaralhavam em sua mente. Indiferente aos gritos do pai, o menino estancou diante de uma pilha de revistas em quadrinhos que um rapazote arrumava na calçada. De repente, imagens e letras confundiram -se de vez. Já não eram somente os olhos do menino que devoravam as revistas; o pai, deslumbrado, não conseguia afastar o olhar delas. ("Entre imagens e letras", p. 83)

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